Em abril de 1864, o nobre Codificador, Allan Kardec, lançava a obra O Evangelho segundo o Espiritismo, que compõe a coletânea de cinco livros que formam as obras fundamentais da Doutrina Espírita.
Inicialmente, o nome da obra era Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, mas, por sugestões de amigos e, certamente, por inspiração dos benfeitores espirituais, logo na 2ª edição, Kardec modifica o nome, adotando o título que conhecemos.
Para compreendermos o contexto histórico e espiritual da obra em foco, vale a pena trazer à baila um fato e uma comunicação espiritual referidos na Revista Espírita de novembro de 1862, ocasião em que Kardec cita o médium Émile, que, além da psicografia, fazia pintura mediúnica, tendo visto um quadro do médium que lhe despertou a atenção.
Era um quadro alegórico no qual havia um caixão com a seguinte inscrição: Aqui jaz 18 séculos de luzes. Kardec faz duas críticas, uma de natureza gramatical e outra de natureza moral, pois dizia que, graças ao Cristianismo, a Humanidade estava mais esclarecida do que naquela época.
O Espírito Léon de Muriane, que havia feito a pintura, comunica-se e esclarece que1:
Aqui jaz é posto intencionalmente. O sujeito não é expresso pelo número 18, representando séculos: é um total de séculos, uma ideia coletiva, como se houvesse um lapso de tempo de 18 séculos. Podereis dizer aos vossos gramáticos que não confundam uma ideia coletiva com uma ideia de separação. Eles próprios não dizem da multidão, que pode ser composta de incalculável número de pessoas, que “ela pode mover-se?” É o bastante sobre o assunto. Assim deve ser, porque essa é a ideia.
Agora, falemos da alegoria. Dezoito séculos de luzes num caixão! Essa ideia representa todos os esforços feitos pela verdade durante esse tempo, esforços que foram sempre destruídos pelo espírito de partido, pelo egoísmo. Dezoito séculos de luzes em pleno dia, seriam dezoito séculos de felicidade para a Humanidade, dezoito séculos que apenas começam a germinar na Terra e que teriam tido seu desenvolvimento. O Cristo trouxe a verdade à Terra e a colocou ao alcance de todos. O que aconteceu com ela? As paixões terrestres dela se apoderaram e ela foi metida num caixão, de onde acaba de tirá-la o Espiritismo. Eis a alegoria.
A observação moral feita pelo Espírito é notável, uma vez que as lições de Jesus, que deveriam servir de roteiro para a Humanidade, foram, gradativamente, sendo esquecidas, adulteradas e diminuídas em sua amplitude devido aos nossos limites espirituais, bastando verificar o caos moral que vivemos na atualidade, quando muitos indivíduos transitam na Terra profundamente infelizes, depressivos, com ideações suicidas, portadores do vazio existencial, de tal sorte que, em linhas gerais, podemos afirmar que a criatura humana perdeu o endereço de Deus.
No século XIX, o contexto não era diferente, haja vista que, em especial na Europa, o materialismo e a descrença marcavam a conduta de grande parte dos indivíduos, havendo um desdém significativo em relação à moral cristã.
Recomendo o estudo da obra Espiritismo e Vida, do médium Divaldo Pereira Franco, ditado pelo Espírito Vianna de Carvalho, a fim de entendermos como a luz mirífica das lições psicoterapêuticas de Jesus foram sendo abafadas e esquecidas, culminando, pouco a pouco, no materialismo acadêmico e/ou vivencial que marcava de forma intensa e doentia o século em que o Consolador Prometido chegou ao orbe terrestre.
Embora nunca tenha faltado socorro espiritual aos habitantes da Terra, uma vez que inúmeros Espíritos missionários mergulharam na indumentária carnal para viver a mensagem cristã, sendo digna de registro a vinda de Francisco de Assis, o fato é que a Idade Média trouxe um gigantesco atraso espiritual à Humanidade. A partir do século IV, os cristãos passaram de perseguidos a perseguidores, iniciando um processo de fragilização da fé, que, muitas vezes, é fortalecida pelos testemunhos árduos. Mais adiante, surgiram, ainda, os monastérios, onde os indivíduos religiosos, que deveriam dar o exemplo, distanciaram-se dos sofredores e da vivência social, acreditando, equivocadamente, que deveriam fugir das tentações e que o Divino estaria apenas em locais especiais, nos templos erigidos pelos homens.
Diz o Espírito Vianna de Carvalho, numa breve análise dos séculos XVIII a XX2:
Analisando a situação socioespiritual do planeta na atualidade, não há como negar-se a presença da destrutiva onda de pessimismo e utilitarismo […].
Em consequência, a violência e o despautério, a drogadição e o erotismo substituem as aspirações de enobrecimento dos seres, como mecanismos escapistas para preencher “o vazio existencial”[…].
O “Iluminismo” em declínio favoreceu o “Positivismo” em ascensão, enquanto as ideias pessimistas e destrutivas de Arthur Schopenhauer espalhavam-se por toda a parte, proclamando a desnecessidade de Deus […].
[…] Nessa paisagem de morbidez e desencanto, o ateísmo tornou-se a diretriz comportamental dos indivíduos, […].
A ética do mais forte substituiu a dos direitos humanos e da dignidade, […].
Viver agora e fruir ao máximo, não poucas vezes sem qualquer respeito pelos direitos dos outros, cultivar o prazer até a exaustão, passaram a ser os comportamentos aceitos […].
[…] houve uma total decadência da ética da cultura e da civilização, que passaram a adorar os novos deuses do prazer e do engodo, da utopia e da mentira, embora vivendo-se o “vazio existencial” que leva à depressão e ao suicídio.
Nada obstante, nesse ínterim, surgiu o Espiritismo em 1857, revitalizando a ética moral baseada nas lições insuperáveis de Jesus, […].
Com a vinda do Espiritismo, as lições de Jesus eram revitalizadas e apresentadas em seu verdadeiro sentido espiritual, de modo que era necessária uma obra específica que abordasse direta e profundamente a moral cristã conectada com o conhecimento da reencarnação, da imortalidade da alma, do intercâmbio espiritual, das leis de causa e efeito e do progresso, com o escopo das criaturas humanas entenderem o verdadeiro sentido da vida e quais são os reais valores que devem ser buscados para que se conquiste a felicidade e a plenitude.
Nesse sentido, o Codificador, na introdução de O Evangelho segundo o Espiritismo, ao propor qual seria o objetivo da obra, afirma que o foco seria o ensino moral de Jesus, por ser inatacável e não gerar disputas religiosas, de forma que o livro seria para uso de todos, para que pudessem conformar, ajustar sua conduta à moral cristã, colocando-a em prática nas diferentes situações da vida.
Outrossim, não se pode ignorar o contexto em que a obra em pauta foi construída, exigindo de Allan Kardec um recolhimento sagrado, por indicação dos benfeitores espirituais, tendo se dirigido inicialmente a Sainte-Adresse, na bela região da Normandia, e logo após a Ville Ségur, de posse de dezenas de comunicações espirituais envolvendo a moral cristã, vindo a redigir, com eloquência e didática incomparáveis, a obra O Evangelho segundo o Espiritismo, que é uma mescla de textos de sua autoria e de mensagens de Espíritos nobres e sábios.
Colhemos da Revista Espírita de dezembro de 1864, do Espírito de Verdade, portanto, o próprio Cristo, ao fazer referência à obra recém-lançada3:
Um novo livro acaba de aparecer; é uma luz mais brilhante que vem clarear o vosso caminho. Há dezoito séculos eu vim, por ordem de meu Pai, trazer a palavra de Deus aos homens de vontade. Esta palavra foi esquecida pela maioria, e a incredulidade, o materialismo, vieram abafar o bom grão que eu tinha depositado sobre vossa Terra. Hoje, por ordem do “Eterno”, os bons Espíritos, seus mensageiros, vêm sobre todos os pontos do globo fazer ouvir a trombeta retumbante. Escutai suas vozes; são aquelas destinadas a vos mostrar o caminho que conduz aos pés do Pai celeste. Sede dóceis aos seus ensinos; os tempos preditos são chegados; todos as profecias serão cumpridas.
Dessa forma, a obra O Evangelho segundo o Espiritismo tem sido essa luz mais brilhante a nos permitir um entendimento mais correto e profundo das lições de Jesus, consolando as almas aflitas, despertando consciências adormecidas e iluminando veredas, recordando que o amor é o único caminho capaz de gerar paz de consciência e saúde espiritual, conectando-nos com Deus, que está em tudo e em todos.
Homenageio essa obra singular e especial com trecho de poema ditado pelo Espírito Ivan de Albuquerque ao médium José Raul Teixeira4:
O Evangelho Segundo o Espiritismo,
Sumo feliz da grande lei moral,
Que nos mostra Jesus como fanal,
Conclama-nos ao digno ativismo.
Pela voz das Falanges Estelares,
Os ensinos do Cristo saltam claros
Num linguajar que aponta, em quadros raros,
Um norte para as mentes populares.
Mostra Moisés, prima revelação,
Representando a força da justiça,
E o Cristo, então, qual ponte levadiça,
Reflete o amor em Sua apresentação.
Revelação segunda, o Mestre exprime
Todo o vigor da prática do bem,
E a luz que o coração do bom contém,
E a força espiritual que o ser redime.
A Verdade que nutre o Espiritismo,
Terceira revelação para o mundo,
É o que garante o ensino mais profundo
Capaz de erguer-nos do ancestral abismo.
Referências
- KARDEC, Allan. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos. Ano 1862, v. 11. Brasília: FEB, 2004. Aqui jazem 18 séculos de luzes ↩︎
- FRANCO, Divaldo Pereira. Espiritismo e vida. Salvador: LEAL, 2009. cap. 28 ↩︎
- KARDEC, Allan. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos. Ano 1864, v. 12. Brasília: FEB, 2004. Comunicação espírita. A propósito de A Imitação do Evangelho ↩︎
- TEIXEIRA, José Raul. Caminhos para o amor e a paz. Niterói: Fráter, 2006. pt. III, cap. 7 ↩︎
Observação
Publicado em maio de 2024, no site “Mundo Espírita” no link: https://www.mundoespirita.com.br/?materia=contexto-historico-e-espiritual-da-obra-o-evangelho-segundo-o-espiritismo