Allan Kardec, o Dirigente Espírita

Quando mencionamos o nome Allan Kardec, que é o pseudônimo adotado por Hippolyte Léon Denizard Rivail, a primeira e, às vezes, a única ideia que nos vem à mente é que ele foi o Codificador do Espiritismo.

Sem dúvida, a sua grandiosa e principal missão foi a de analisar, coordenar, codificar as ideias e os conceitos trazidos pelos Espíritos superiores sob a tutela de Jesus, estabelecendo as bases e os conceitos da Doutrina Espírita, especialmente nas obras fundamentais: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese.

Todavia, quando estudamos a Revista Espírita que ele redigiu, mensalmente, durante onze anos e quatro meses, de janeiro de 1858 a abril de 1869, conseguimos identificar as demais tarefas espíritas exercidas por ele com excelência, pois também atuou como dialogador (tarefa de esclarecer e colher informações dos Espíritos), atendente fraterno, dirigente, sendo, ainda, um verdadeiro e sincero espírita, conforme a classificação constante na obra O Evangelho Segundo o Espiritismo1.

Neste artigo, desejamos ressaltar a tarefa de dirigente espírita desempenhada por Allan Kardec, como presidente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas – SPEE de 1º de abril de 1858 a 31 de março de 1869 (data da sua desencarnação), enfrentando inúmeros desafios, internos e externos, ora como dirigente, ora como Codificador, cujo modo de agir deve inspirar os dirigentes e trabalhadores do Movimento Espírita na atualidade.

Repita-se que o estudo integral da Revista Espírita permitirá esse aprendizado, mas permito-me sugerir uma leitura atenta da seção Boletim, que era uma síntese das principais ocorrências que se davam na SPEE, que Kardec publicou de julho de 1859 a fevereiro de 1861.

Por que devemos estudar e nos inspirar na atuação de Kardec como dirigente espírita?

É sabido que vivemos um período desafiador para o Movimento Espírita, pois alguns adeptos têm agido por desequilíbrio, por desconhecimento, por obsessão e/ou por orgulho (desejam ver a Casa Espírita cheia), trazendo para as Casas Espíritas práticas estranhas, descabidas e inadequadas, havendo, também, os espíritas novidadeiros, nunca satisfeitos com o conteúdo oferecido pelo Espiritismo, constantemente buscando novidades perniciosas, sem qualquer fidelidade às bases doutrinárias.

Indubitavelmente, tem sido um grande desafio para os dirigentes e trabalhadores conviver com esses tipos de espíritas, pois geram desgastes físicos, emocionais e morais, bem como testa ou coloca em prova a serenidade, a paciência e a fidelidade espírita, embora não lhes falte auxílio espiritual.

Na Revista Espírita de dezembro de 1868, no artigo Constituição Provisória do Espiritismo, no item III (Dos Cismas), Kardec menciona que o Espiritismo sofreria com as ideias pessoais que surgiriam para afetá-lo e faz um importante alerta:

Se o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais sempre se há de contar, pode paralisar as suas consequências, e é o essencial.

É claro que o Espiritismo não está fechado a novos conceitos, tanto que o próprio Codificador disse exaustivamente que a Doutrina Espírita é progressista, mas estabeleceu os critérios para que uma nova ideia possa integrá-la, isto é, estar pautada pelo bom senso, ser fiel aos princípios e valores do Espiritismo e estar alicerçada na universalidade dos ensinos.

Temos visto, desde há muito tempo, pessoas tentando inserir no corpo doutrinário do Espiritismo ideias e práticas que não se enquadram nos citados critérios, bem como agindo de forma descompromissada. Podemos citar exemplos, alguns, inclusive, que afetam as tarefas das Casas Espíritas e os eventos espíritas: cromoterapia; excesso de autoajuda nos eventos espíritas; apometria; funcionamento das Casas Espíritas exclusivamente na modalidade virtual; reunião mediúnica virtual; Casas Espíritas que estão abolindo as reuniões mediúnicas; espíritas fanáticos em Allan Kardec que rechaçam as obras de Francisco Cândido Xavier, Divaldo Pereira Franco, Yvonne do Amaral Pereira; passes diferentes e ritualizados; passes em animais; oradores sem vinculação à Casa Espírita; aumento de obras de autores encarnados e desencarnados de má qualidade doutrinária.

Kardec também enfrentou inúmeros desafios internos e submovimentos que surgiam tentando deturpar o Espiritismo e as tarefas espíritas, como:  defensores da inutilidade da prece2; espíritas que almejavam o Espiritismo sem os Espíritos e Espiritismo independente3; espíritas novidadeiros que queriam coisas novas4.

Como agia Kardec? Quais as suas virtudes nessas demandas?

Ele agia com energia, amorosidade, rapidez e com embasamento doutrinário. Não era agressivo, desrespeitoso, mas sabia que tinha que agir rápido, usando, dessa forma, a tribuna do Espiritismo que era a Revista Espírita, com o propósito de abordar a questão ou o problema, evitando que sua inércia ou omissão pudesse gerar um dano doutrinário de maior monta, atingindo mais mentes frágeis ou invigilantes.

São tempos desafiadores os que estamos vivendo no Movimento Espírita, de tal sorte que os dirigentes e trabalhadores espíritas devem seguir o modelo e as virtudes do dirigente Allan Kardec, não se omitindo ou achando equivocadamente que o tempo, por si só, resolverá algumas questões.

São momentos de medidas severas, mas pautadas pela amorosidade e pelo diálogo fraternal.

Se for necessário encerrar uma tarefa ou uma prática que não esteja adequada, que o façamos!

Se for indicado trocar o dirigente ou o responsável pela tarefa, que efetivemos a mudança!

Se for necessário retirar dezenas, centenas de livros da biblioteca da Casa Espírita por falta de fidelidade doutrinária, que os retiremos!

Se for adequado abordarmos preventivamente um tema ou um assunto que vem afligindo Casas Espíritas, que podem chegar nos nossos núcleos religiosos em razão da velocidade das informações e das redes sociais, que o abordemos!

Vejamos alguns exemplos de Allan Kardec para que sua firmeza, amorosidade, agilidade e qualidade doutrinária possam nos inspirar na condução das tarefas espíritas:

  1. Na Revista Espírita de fevereiro de 1862 há uma comunicação do Espírito Lázaro sobre os instintos e, mesmo sendo um Espírito conhecido e com excelentes mensagens, Kardec avalia com cuidado a comunicação e discorda de um trecho, a meu ver com muito acerto, explicando o motivo. Vejamos que Kardec revelou um grande comprometimento e zelo com a Doutrina Espírita, não se preocupando se iria desagradar o Espírito ou a médium (Sra. Costel).

A partir de ideias ou conceitos equivocadas que são aceitos podem surgir ou se desdobrar como consequência outros pontos e assertivas igualmente incoerentes ou indevidas.

  1. Kardec demonstrava fidelidade ao que escrevia e recomendava ao Movimento Espírita, tanto que na condução das tarefas da SPEE interrompe a leitura de uma comunicação espiritual, haja vista que ela tratava de dogmas religiosos, o que não era recomendado e o regulamento da citada sociedade fazia essa proibição5.

Os dirigentes e tarefeiros espíritas necessitam exemplificar os ensinamentos que recebem do Espiritismo, não se preocupando se alguma atitude tomada em nome do zelo doutrinário irá desagradar algum frequentador da Casa Espírita.

  1. O bom senso de Kardec é impressionante, tanto que ao analisar determinadas ideias ou sugestões, ele avaliava todas as implicações possíveis, rejeitando aquelas que não fossem adequadas ou inexequíveis.

Na Revista Espírita de julho de 1866, no artigo Projeto da caixa geral de socorro e outras instruções para os espíritas, Kardec refuta a ideia de um Espírito, uma vez que ela era impraticável, não obstante fosse boa.

Na gestão da Casa Espírita, os dirigentes poderão se deparar com uma situação semelhante, devendo adotar essa postura exemplar, descartando a ideia que não seja passível de implemento, pois, se não o fizer, tal omissão poderá ensejar desafios e prejuízos desnecessários à ambiência e ao relacionamento pessoal no núcleo religioso.

  1. É comum aparecerem interessados que almejam ingressar nas reuniões mediúnicas e nem sempre estão devidamente qualificados para essa tarefa, mas alguns dirigentes, por receio de desagradar, optam por aceitar a inclusão, gerando dificuldades oportunas para o grupo mediúnico.

No artigo Poesias espíritas, da Revista Espírita de agosto de 1866, Kardec se depara com o pedido de uma pessoa para fazer parte da reunião mediúnica, dizendo-se médium escrevente intuitivo.

Com a responsabilidade que lhe era característica, Kardec convida a pessoa a demonstrar seu potencial mediúnico e a coloca junto com outros médiuns, tendo aquela rabiscado três ou quatro linhas com muitas rasuras, ao  passo que os demais psicografaram com rapidez.

Naturalmente, Kardec percebeu a precipitação e o despreparo do interessado, fez uma avaliação adequada e este nunca mais apareceu. Imaginemos os inconvenientes que poderiam ocorrer se tivesse sido colocado para trabalhar na reunião mediúnica. Kardec agiu em defesa dos valores doutrinários e do conhecimento espírita que detinha, não se preocupando se a pessoa iria se melindrar ou até se iria se tornar seu inimigo.

Que os dirigentes e tarefeiros espíritas possam seguir esse exemplo inspirador de Kardec, cultivando o zelo e a seriedade nas tarefas que integram.

Na Revista Espírita encontraremos outros inúmeros fatos envolvendo as virtudes de Kardec como dirigente espírita, portanto, repita-se, que possamos estudar integralmente essa obra, com o escopo de ampliarmos nosso conhecimento e nos qualificarmos ainda mais para as tarefas que abraçamos na Casa Espírita, seguindo os exemplos de Kardec e de Jesus, que nos alertou sobre a importância da firmeza de postura e da fidelidade aos ideais que elegemos6Seja, porém, a vossa palavra  o seu sim, sim; não, não; o que excede disso é do mal.

Referências:

  1. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2001. cap. XVII, item 4. ↩︎
  2. ___________. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos. Ano 1866, v. 1. São Paulo: EDICEL, 1999. Considerações sobre a prece no Espiritismo. ↩︎
  3. Op. cit. Ano 1866, v. 4. O Espiritismo sem os Espíritos. O Espiritismo independente. ↩︎
  4. p. cit. Ano 1865, v. 8. O que ensina o Espiritismo. ↩︎
  5. Op. cit. Ano 1860, v. 5. Boletim. Sexta-feira, 20 de abril de 1860 – Sessão particular. ↩︎
  6. BÍBLIA, N. T. Mateus. Português. O novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1966. cap. 5, vers. 37. ↩︎

Observação:

Artigo publicado no site da FEP (Federação Espírita do Paraná), em março de 2024, link: http://www.mundoespirita.com.br/?materia=allan-kardec-o-dirigente-espirita#

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Alessandro Viana Vieira de Paula

Diretor Doutrinário na ABRAME, autor de livros, palestrante e articulista de várias entidades espíritas.