VÓS SOIS DEUSES! (João 10:34)

A afirmação de Jesus de que vós sois Deuses, leva-nos a uma profunda investigação. Se considerarmos que, de acordo com a resposta contida na pergunta número 1 do Livro dos Espíritos, Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas! Restaria a conclusão de que possuímos essas qualidades inerentes ao Criador latentes em nosso espírito. Todavia, essa dedução merece maior reflexão. A filosofia Socrática (470 a.C. – 399 a.C.) ensinava que o conhecimento do homem deveria conduzi-lo a investigar sua própria realidade, daí a célebre frase atribuída ao filósofo – conhece-te a ti mesmo. O conteúdo da ideia de Sócrates, séculos após, foi reproduzido através dos ensinamentos do Mestre ao afirmar – “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32). Essas questões devem ser interpretadas à luz da razão e, ao mesmo tempo devem igualmente, conduzir-nos à outra análise que se encontra na pergunta 621 do Livro dos Espiritos, quando Allan Kardec indagou: Onde está escrita a lei de Deus? A resposta foi direcionada no sentido do conhecimento da nossa realidade psicológica. O espírito da verdade afirmou de forma peremptória – na consciência!

É naturalmente verdadeiro que a análise de todas essas questões, indica que possuimos em nossa intimidade psicológica um tesouro extraordinário de valores, que não conseguimos ainda descortinar. Somente através do processo do auto-conhecimento o ser humano principia extrair das profundezas do seu subconsciente, um diamante incrustado na rocha bruta para, em seguida, a lapidar com o propósito de transformar a pedra extraída em jóia cristalina e fulgurante. O ser humano é uma entidade em construção, necessitando auto-descobrir para se projetar no espaço infinito e ocupar o lugar que lhe foi destinado pelo Criador.

Segundo ensina Joanna de Angelis 1 , “A consciência de si desvela o mundo interno ignorado, favorecendo com reflexões agradáveis na busca do autoconhecimento”. A imersão que se realiza na direçao do nosso eu converte-se em profundo ato de compreensão da realidade espiritual individual, com o propósito de adquirir consciência do que somos e, iniciar o processo de construção daquilo que pretendemos ser. Afinal, somente quando adquirirmos conhecimento do que nos falta, seremos capaz de buscar valores para preencher o vazio existente presente na nossa intimidade – um verdadeiro processo de remodelação do espírito.

O homem primário desconhece toda essa realidade, porque não aprendeu ainda o significado da própria existência – vive à margem dos fenômenos que ocorrem à sua volta em razão da materialidade que ofusca a sua visão. Exapery afirmou que, “o essencial é invísivel aos olhos”. Essa cegueira cultural, intelectual e espiritual explica os grandes desacertos que ocorrem no mundo das relações. José Saramago, em seu livro prêmio Nobel de literatura de 1998, “Ensaio sobre a Cegueira”, na “orelha” do seu livro assinala: “Às vésperas do fim do milênio, num período onde imperam, de um lado, a velocidade, a ganância e a abstinência moral e, de outro, a profecia e um misticismo compensatório, o escritor vem nos lembrar a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Isto porque, na maioria das vezes não vemos o próximo, para com ele compartilhar nossas ansiedades e projetos. Por sua vez, para compreender o próximo, se não conhecemos nossa própria capacidade de entender o mecanismo da relação e da tolerância? “Os homens-maus ‘esquivam-se à própria vida, destruindo a si mesmos’, incapazes de suportar a própria companhia”, no dizer de Hannah Arendt 2 . E, a autora continua, “O homem-vil de Aristóteles, não consegue submeter seus desejos às ordens da razão e, por esse motivo, não pode exercer contrôle sobre seus próprios atos no universo relacional. Somente quando o homem se liberta das âncoras da matéria e inicia o percurso na direção da sua intimidade, consegue compreender o sentido da vida humana”.

Nesse processo de reflexão a pessoa inicia a escalada nas grandes cordilheiras do espírito, superando os dificeis e intricados caminhos que nos conduzem à sua realidade existencial – começa a se tornar Deus! Teinhard de Chardin 3 esclarece que “reflexão é o estado de uma consciência que se tornou capaz de se ver e de prever a si mesma. Pensar é não apenas saber, mas saber o que se sabe”. Esse verdadeiro estado principiológico de consciência, habilita o ser humano ao dominio de si mesmo, o que significa iniciar a conquista do seu poder de autocontrôle. Liev Tolstói 4 em seu livro “O Reino de Deus está em vós”, afirmou, “A doutrina de Cristo tem grande poder exatamente porque requer a perfeição absoluta, isto é, a identificação do sopro divino que se encontra na alma de cada homem com a vontade de Deus, identificação do filho com o Pai”.

Allan Kardec vislumbrou através da doutrina espírita, uma ciência na busca da verdade, do autoconhecimento, da introspeção analítica, da reflexão cognitiva sobre a nossa propria realidade e do próximo. Não é uma filosofia meramente comportamental, senão instrumento de habilitação na direção da entendimento do complexo mecanismo que comanda nossa conduta no mundo da convivência. “Através do olho mental penetrante consegue-se a introspecção saudável, direcionada para as ocorrências psicológicas, desse modo adquirindo-se um conhecimento consciente”, assinala Joanna de Angelis 5.

Essa viagem ao desconhecido, na direção do nosso subconsciente, é o desafio que a filosofia espírita nos convoca para comprender o significado real da encarnação e da evolução. Evoluimos por etapas, porque em cada retorno à matéria o homem adquire novos conhecimentos, que se somam aos anteriores para, a partir de um determinado momento, compreender o significado e a razão da existência. Certamente que o momento culminante para o espírito se revela quando inicia o autoconhecimento. Compreender é uma conquista que envolve saber, que se desenvolve na busca da consciência da realidade que nos envolve. Nessa linha de idéias, Erich Fromm 6 assinala que, “é a voz do verdadeiro eu que nos convoca para nós mesmos, para viver produtivamente, para desenvolver-nos ampla e hamoniosamente – isto é para tornarmo-nos aquilo que somos potencialmente (destaque do autor).

A frase sugestiva de Fromm remete-nos à filosofia do Cristo quando afirmou “vós sois Deuses”! O homem, que se encontra em processo de autoconhecimento, somente será verdadeiramente livre quando se autodescobrir e trouxer à superfície do recôndido do seu espírito, os incomensuráveis valores que se encontram incrustados em nosso subconsciente. Huberto Rohden 7 ensina, “Ora, sendo o homem essencialmente divino – embora a consciência da sua divindade se ache, por ora, em estado potencial de latência – pode a voz de Deus acordar nele o eco ou a reminiscência da sua origem dívida”. Um verdadeiro Deotropismo que nos impulsiona na direção do Criador, a exemplo das plantas que, através do heliotropismo, se dirigem para o sol.

Dessa forma, o ensinamento do Cristo nos conduz à dois desafios – conhecer a si mesmo e se libertar das algemas que nos prende ao dogma, ao preconceito e, à ignorância. Para, a partir do conhecimento dessa realidade, alçar vôo na direção do autoconhecimento. E, ao iniciarmos esta viagem assumiremos o controle do nosso espírito, instrumentando-nos para descer nas profundidades do nosso EU, e nos conduzir às alturas das imensas cordilheiras do conhecimento, da compreensão e do significado da linguagem divina – seremos donos do nosso destino. E, nessa circunstância, poderemos realizar nossas escolhas, conscientes dos efeitos que elas produzirão em nossa existência. Seremos os Deuses anunciados pelo Cristo!


  1. ANGELIS, Joanna de, “Iluminação Interior”, obra psicografada por Divaldo Pereira Franco, Salvador, Livraria Espírita Alvorada, 2006, p. 122.
  2. ARENDT, Hannah, A Vida do Espírito, Rio de Janeiro, Editora Civilização brasileira, 2009, p. 321.
  3. CHARDIN, Teilhard, O Fenômeno Humano, São Paulo, Editora Cultrix, 1995, p. 203.
  4. TOLSTÓI, Liev, O Reino de Deus está em vós, Rio de Janeiro, Editora BestBolso, 2011, p. 99.
  5. ANGELIS, Joanna, O Despertar do Espírito, obra psicografada por Divaldo Pereira Franco, Salvador, Livraria Espírita Alvorada Editora, 2000, p. 76.
  6. FROMM, Erich, Análise do Homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1961, p. 146.
  7. ROHDEN, Huberto, O Sermão da Montanha, 17ª edição, São Paulo, Editora Martin Claret Ltda., p. 184.
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Clayton Reis

Vice-presidente da ABRAME, Juiz aposentado, Escritor, Professor Universitário e Advogado.