Na Revista Espírita de março e abril de 1861 encontramos a citação de um dos ataques mais desleais sofridos pelo Espiritismo, pois o Sr. Emile Deschanel, no Journal Des Débats, escreveu um artigo asseverando que a Doutrina Espírita está baseada num materialismo grosseiro.
Allan Kardec, no artigo “O homenzinho ainda vive” (Revista Espírita de março de 1861), demonstra seu inconformismo com o texto do Sr. Deschanel, explicando que o Espiritismo combate o materialismo ao ensinar a existência de Deus, da alma, sua imortalidade, as penas e recompensas futuras, comprovando todas essas afirmativas através da manifestação dos Espíritos.
O nobre Codificador transcreve o texto de uma carta que redigiu, consignando o grave erro do jornalista, todavia, na Revista Espírita de abril de 1861 (no artigo “Mais uma palavra sobre o Sr. Deschanel”), vem a notícia de que não haveria a retificação do artigo ou a publicação da carta de esclarecimento de Kardec, tendo este anotado que: “Não julgamos dever exigir a inserção de uma contradita. Ele tem liberdade de achar nossa doutrina má, detestável, absurda, de o gritar de cima dos telhados, mas esperávamos de sua lealdade a publicação de nossa carta para retirar uma alegação falsa e que podia atingir a nossa consideração, no tocante a nos acusar de professar e propagar as mesmas doutrinas que combatemos, como subversivas da ordem social e da moral pública.”
Notamos a postura elevada e nobre de Allan Kardec ao indignar-se com o texto do Sr. Deschanel, pois em nenhum momento foi agressivo, deseducado e desleal, sabendo expressar equilibradamente seu inconformismo, e, ao mesmo tempo, demonstrou entender a limitação moral do jornalista, a ponto de não externar qualquer palavra odienta ou desejo de vingança contra este.
Anote-se que não foi a única vez que Kardec manteve-se sereno e soube se expressar com acentuada moralidade diante de ataques graves e desleais ao Espiritismo.
O exemplo do Mestre Lionês deve ecoar em nossas almas, porque a Terra ainda é um mundo imperfeito e temos que conviver com situações e fatos que chocam os valores morais exarados no Evangelho de Jesus, inquietando aqueles que já desejam uma vida melhor em nosso Orbe.
Frequentemente nos deparamos com notícias de assassinatos, estupros, violência doméstica, corrupção, revelando que alguns Espíritos não desejam, neste momento, progredirem espiritualmente, preferindo permanecer em estágios primitivos da evolução.
Ficamos indignados que há pessoas que, em plena pandemia da covid-19, desviam verbas públicas destinadas a área da saúde, que deveriam minimizar os efeitos drásticos da citada doença.
Há, também, aqueles que poluem a natureza, que abandonam filhos, que aplicam golpes em idosos, que maltratam animais, que dirigem seus veículos de forma imprudente, que almejam levar vantagens em qualquer situação, que exploram sexualmente menores etc.
Diante das redes sociais e da extrema velocidade da veiculação das informações, temos que, diariamente, lidar emocionalmente com dezenas de notícias desses portes. Temos, ainda, que tomar conhecimento de pensamentos doentios e ideias perturbadoras que são postados nos canais de comunicação virtual cada vez mais sofisticados.
Ademais, iremos nos deparar com comportamentos infelizes e desequilibrados também nas esferas familiar, social, profissional e religiosa.
Para aqueles que estão se esforçando por melhorar suas condutas, ajustando-as, gradativamente, aos padrões do Cristo, cujas lições são relembradas pelo Espiritismo, surgem as seguintes questões: Posso indignar-me com tudo isso? E como expressar minha indignação?
Conforme o exemplo que trouxemos de Kardec, fica a certeza de que podemos e devemos nos indignar com as condutas ainda primitivas e que atentam contra os bons valores, até porque, uma postura diversa, em algumas situações, poderia se enquadrar como indiferença e omissão, o que não se coaduna com a transição planetária que estamos vivendo, pois somos convidados a agir como protagonistas na construção do mundo regenerado do porvir.
O ponto vital é saber como externar a indignação, haja vista que, algumas pessoas, a expressam com violência, com ódio, com desarmonia, agindo, às vezes, com mais gravidade do que o ato que gerou o seu inconformismo.
Ressalte-se, ainda, que é importante auscultar a nossa alma e as nossas emoções quando ficamos indignados, porque talvez consigamos conter uma reação infeliz, lembrando que os pensamentos e as emoções podem revelar traços da evolução que necessitam ser aprimorados, pois, no atual estágio evolutivo, trazemos luzes e trevas em nossa morada íntima.
Aliás, isso significa indignar-se saudavelmente consigo mesmo, diante das mazelas morais que ainda portamos, procurando não repetir o erro. Merece registro o texto de Paulo de Tarso quando disse que ainda fazia o mal que não queria e não fazia o bem que desejava (Romanos 7:19), isto é, indignava-se, sem lamúrias improdutivas, com as próprias atitudes e inclinações.
Outrossim, a indignação deve ser pautada pela tolerância e pela amorosidade, pois devemos entender o nível de evolução espiritual daquele que age em desacordo com os princípios do bem, do ético e do nobre, olhando-o como um irmão de caminhada evolutiva que necessita de oração, e se for alguém com quem temos intimidade, ele também necessitará de acolhimento afetivo e de palavras suaves que inspirem reflexão e mudança.
Allan Kardec indignava-se serenamente com os ataques e seguia trabalhando fielmente no bem, revigorando-se com as bençãos e os consolos que o Espiritismo propiciava na vida das pessoas.
Dessa forma, não devemos permitir que as coisas ruins que ocorrem nos enfraqueça no caminho do bem, confiando sempre na vitória do amor, que deve sempre inspirar as nossas ações.
Vale a pena também felicitar-se pelas coisas boas que acontecem no mundo, pois há indivíduos comprometidos com o bem que ajudam na edificação de uma sociedade mais moralizada, servindo de ânimo e força para seguirmos fiéis a Jesus e a Kardec.
No Evangelho de Mateus (20:24-28), há uma extraordinária lição de Jesus, que, logo após receber o pleito de Salomé para que seus filhos, João e Tiago, no Reino que iria construir, se sentassem ao seu lado, um à direita e o outro à esquerda, o que gerou uma indignação dos demais apóstolos (Mt 20:24).
O Mestre, percebendo que a situação poderia se agravar e que a indignação poderia ser maléfica, convoca os apóstolos e ensina que aquele que quiser ser o maior que se faça o servo de todos.
Assim sendo, a grande lição moral que deve nortear os nossos passos na Terra é que podemos nos indignar com os equívocos alheios, mas com imensa tolerância e sem qualquer expressão de maldade, não descuidando de vigiar a nós próprios e servindo intensa e alegremente no bem.