Sair do Século

Um dia, talvez atormentado pela incerteza, monta no cavalo e percorre solitário a verde campina adjacente à sua cidade. Precisamente aí, dando de cara com um leproso, sente-se visceralmente repugnado e foge. Fugirá nesse momento do leproso ou de si mesmo? Subjugado por uma misteriosa força interior, volta atrás para se encontrar com o leproso, a quem abraça e beija enternecido. Esse encontro aberto com um excluído da sociedade, reduzido a pobre despojo humano, e o acolhimento amoroso que lhe dispensa teve nele um tal impacto, revolveu-o de tal modo que, pelo fim da vida, redigindo o Testamento, recorda ainda a repugnância sentida pelos leprosos. “Aquilo que antes me parecia amargo converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo”. Tamanha foi a convulsão, de tal forma lhe alterou o quadro de valores, que ele mesmo dirá depois: “Saí do século”1

Sair do século, ou seja, uma alteração geral no quadro de valores. Que interessante experiência nos deixa Francisco de Assis, no seu Testamento! A partir de um ato de coragem e de amor, superando anterior repugnância, Francisco adentra em outra fase de sua linda existência.

Para nós, uma grande lição e um grande desafio. Naquela fase da vida, Francisco já escutara o convite de Jesus de reforma da Igreja, mas tinha ainda muitas dúvidas sobre como proceder. É nesse contexto reflexivo que ele tem a experiência transformadora.

Vamos ter na literatura mediúnica uma linda mensagem de Irmão X, psicografada por Francisco Cândido Xavier, na qual temos experiência semelhante2.

Narra Irmão X a saga do cavaleiro D’Arsonval, valoroso senhor na França, eminente cristão, que trazia consigo um propósito central: servir ao Senhor, fielmente, para encontrá-lO.

Na história, há várias viagens do nobre cavaleiro que, no início do percurso, sempre encontra um mendigo com muitas chagas que lhe estende as mãos descarnadas e súplices. Sem fixar os olhos no mendigo, atende sua solicitação doando ora uma bolsa farta, ora um pequeno brilhante, ora uma joia de alto valor, um fino manto, um gorro de alto preço e outros presentes.

Na última viagem, em que  D’Arsonval se junta à expedição de Godofredo de Bouillon na Cruzada que pretende libertar os lugares santos, ele acaba preso e fica muitos anos distante de sua residência. Muito tempo depois, homem convertido em fantasma, retorna ao lar, onde não é reconhecido. Com a falsa notícia de sua morte, sua esposa havia se casado novamente e os filhos, revoltados com o estranho, soltam cachorros agressivos que o atacam cruelmente. Procura pelos amigos, mas é considerado louco por todos.

Afasta-se, assim, com passos vacilantes, sem ter para onde seguir, quando, já na saída da cidade, volta a encontrar o mendigo. Relembra a passada grandeza e busca algo para doar, sem nada encontrar…

Pela primeira vez, contempla o infeliz e sente que ele devia ser seu irmão. Segue para abraçá-lo e, cruzando com ele um olhar angustiado, sente que aquele homem, chagado e sozinho, devia mesmo ser seu irmão. Abriu os braços e, tocado de simpatia, caminhou em direção a ele, como se quisesse lhe dar o calor do seu próprio sangue.

Foi então que ouviu as marcantes palavras3.

D’Arsonval, vem a mim! Eu sou Jesus, teu amigo. Quem me procura no serviço ao próximo mais cedo me encontra… Enquanto me buscavas à distância, eu te aguardava, aqui tão perto! Agradeço o ouro, as joias, o manto, o agasalho e o pão que me deste, mas há muitos anos te estendia os meus braços, esperando o teu próprio coração!…

Vamos ver momento semelhante quando Maria, de Magdala4, após a partida de Jesus, não conseguindo seguir com os disseminadores da Boa Nova – que temiam que sua presença pudesse ser perniciosa -, sentia solidão e abandono. Andando pelas praias, encontra em uma tarde um grupo de leprosos que vinham de muito longe em busca da cura com Jesus. Ela os abraça, conta que Jesus partira e se detém por horas a falar, saudosa, do Mestre. Quando eles se despedem, gratos, porém, tristes, ela decide seguir com eles para semear os ensinamentos de Jesus. Ali, ela também sai do século.

Quando Joana de Cusa5, com a alma torturada, procura Jesus para falar de suas lutas e desgostos, uma vez que seu esposo, Intendente de Herodes, ora comparecia ao Templo de Jerusalém, ora fazia sacrifícios aos deuses romanos, sem compreender, nem de longe, a mensagem de Jesus, que Joana tentava transmitir a ele, Jesus, com muita ternura e compreensão, recomenda-lhe que volte ao lar e ame o seu companheiro, sendo-lhe fiel. Joana de Cusa segue o conselho e se dedica inteiramente ao lar e ao rude esposo. Passa por duros testemunhos, mas entende que o seu caminho era através da família, onde servia a Jesus saindo do século.

Sair do século é uma postura de amadurecimento, um fenômeno concreto na transformação moral, quando atingimos um estágio diferente na maturidade do senso moral6. Em geral, isso ocorre com aqueles que estão em busca do crescimento, do aperfeiçoamento, enfrentando os conflitos provocados por essa busca.

Percebemos, no encontro de Francisco de Assis com o leproso, que Francisco já tinha ouvido o convite de Jesus e buscava reformar as igrejas físicas que encontrava, embora não houvesse ainda compreendido aquilo que desejava Jesus.

Da mesma forma, os demais personagens estavam em sua busca. D’Arsonval lutou nas Cruzadas para servir ao Cristo sem, no entanto, encontrá-lO ali tão perto. Maria de Magdala escutou os ensinamentos e conselhos do próprio Mestre, se desfez dos bens materiais, seguiu Jesus de perto, ficou na cruz testemunhando coragem e fé, mas encontrou seu caminho com os leprosos. Joana de Cusa queria servir ao Cristo e encontrou na família o seu caminho.

Aprendemos com o próprio Mestre7Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me.

sair do século é exatamente o momento em que o aprendiz entende o que é a renúncia e a negação de si mesmo em favor do próximo.

Nós, espíritas, que aprendemos com Allan Kardec8 que seremos reconhecidos por nossa transformação moral, pelos esforços que fazemos para domar as más inclinações, estamos nesse caminho, nessa busca do verdadeiro Cristianismo.

Prossigamos, assim, na permanente busca pelo nosso encontro divino, para que saibamos perceber nosso momento de renúncia, nosso momento de negação de nós mesmos, o momento certo de sair do século.

Referências

  1. MERINO, José Antônio. D. Quixote e S. Francisco, dois loucos necessários. Braga: Editorial Franciscana, 2004. p. 40. ↩︎
  2. XAVIER, Francisco Cândido. Contos e apólogos. Pelo Espírito Irmão X. Rio de Janeiro: FEB, 1958. cap. 21. ↩︎
  3. XAVIER, Francisco Cândido. Contos e apólogos. Pelo Espírito Irmão X. Rio de Janeiro: FEB, 1958. cap. 21. ↩︎
  4. MARCON, Maria Helena. Personagens da Boa Nova. Curitiba: FEP, 2016. cap. Maria, de Magdala. ↩︎
  5. Op. cit. cap. Joana de Cusa. ↩︎
  6. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2013. cap. XVII, item 4. ↩︎
  7. BÍBLIA, N. T. Lucas. Português. O novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1966. cap. 9, vers. 23. ↩︎
  8. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2013. cap. XVII, item 4. ↩︎

Nota

Este artigo foi originalmente publicado no site Mundo Espírita. Para acessar o conteúdo original, clique aqui.

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Marcelo Anátocles Ferreira

Desembargador e Associado da ABRAME.