Publicado originalmente no site Mundo Espírita, em setembro de 2024, neste link.
Vivi uma experiência interessante que gerou algumas lições. Uma mudança de apartamento, seguida de algumas obras, que tornou necessário mexer em gavetas e armários. Muitas coisas guardadas e esquecidas no fundo dos móveis. Coisas que nos são inúteis, que poderiam ter passado de mão (e ainda podem). Roupas e objetos dos quais sequer nos lembrávamos, fotos que remontam a um tempo que parece ter sido de outra vida.
Foi preciso colocar todos os objetos em caixas e, depois, arrumar tudo na nova casa. Isso me fez lembrar do permanente trabalho de reforma íntima que devemos operar. O autoconhecimento e a reforma interior são tarefas para uma vida inteira, ou melhor, para várias vidas.
A benfeitora Joanna de Ângelis, pelas abençoadas mãos de Divaldo Franco, adverte 1:
Não adies, hoje, o teu renascimento moral, pensando já na próxima conjuntura carnal.
A reencarnação vindoura será, sem dúvida, a continuação da reencarnação em que te encontras.
Começa, agora, esse amanhã, que anelas e envida todos os esforços para triunfar.
Joanna de Ângelis
Em O Livro dos Espíritos, o autoconhecimento nos é apresentado como o meio prático mais eficaz para a melhora nesta vida e para a resistência à atração do mal.
Quando Allan Kardec, logo adiante, solicita um método para a conquista do autoconhecimento, em virtude da dificuldade de tal tarefa, a resposta é um belíssimo roteiro assinado por Santo Agostinho 2.
[…] interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. […]
Formulai, pois, de vós para convosco, questões nítidas e precisas e não temais multiplicá-las. […]
Santo Agostinho
Será, pois, através dessas perguntas sobre a nossa própria conduta que iniciaremos o caminho do mergulho interior. Vale a leitura da resposta completa na qual Santo Agostinho propõe esse exercício diário.
Estratégia interessante essa de mexer nas gavetas interiores, colocar tudo para fora para possibilitar a arrumação.
Há muita coisa que fica no fundo da gaveta e é esquecida com o tempo. Coisas boas e coisas ruins. Mágoas, feridas não cicatrizadas ou mal cicatrizadas, histórias que ficaram pela metade, mas ainda repercutem em nós.
Ao mesmo tempo, há boas memórias, afetos recordados, histórias felizes que valem ser lembradas e que nos trazem ensinamentos, fazendo com que vejamos que também acertamos nas experiências do ontem.
Ainda não conseguimos regredir ao passado reencarnatório, experiência que nos faria também encontrar episódios felizes e outros nem tanto.
Desde que temos condições de visualizar essas gavetas do ontem recente, é muito bom organizá-las o mais cedo possível.
Rever o que nos magoou, feriu e ainda fere, para consertarmos a situação e os sentimentos. Se ferimos alguém e nos arrependemos, podemos procurar o outro para refazer caminhos, pedir desculpas ou simplesmente conversar. Não sendo possível o reencontro, devemos orar para envolvê-lo nas melhores vibrações, rearrumando os sentimentos. Se necessário, pedir a ajuda de terceiros, inclusive terapêutica, para sanear esse terreno pantanoso da mágoa e do ressentimento.
Se fomos nós que nos ferimos e a ferida permanece mal cicatrizada, devemos fazer um esforço para perdoar de fato. Não vale a pena carregar o peso dessa mágoa, desse ressentimento, dessa dor. É preciso reencontrar e refazer caminhos. Não sendo possível, podemos nos valer mais uma vez da oração e da ajuda de terceiros para que consigamos prosseguir.
Esses sentimentos desorganizados, que estão nos escaninhos da alma, nos infelicitam e podem nos causar enfermidades físicas, dependendo da sua dimensão.
Precisamos ainda trazer de volta as boas histórias, o bem realizado, para conseguirmos sentir novamente a alegria dos bons momentos, daqueles felizes, e colocar para fora aquelas boas vibrações do ontem bem vivido.
Renovar sentimentos, relembrar e repetir os gestos nobres e bons, ainda que revestidos da mais completa simplicidade. Refazer os gestos equivocados, trocar pensamentos doentios por saudáveis, buscar atitudes equilibradas que compensem as equivocadas do ontem.
Essas arrumações nas gavetas devem ser periódicas. Um episódio na vida de São Francisco de Assis bem nos ilustra 3.
Havia um grupo de bandoleiros nas florestas nos arredores de Borgo Sansepolcro. Algumas vezes pediam esmola e outras vezes assaltavam os caminhantes. Esse grupo frequentava o ermitério dos frades em busca de esmola ou algo mais. Os solícitos frades não deixavam de socorrê-los, embora soubessem quem eram. Isso, no entanto, gerou uma divisão entre eles, desde que alguns não achavam certo dar esmola a bandidos.
Pediram, então, conselho ao irmão Francisco, que, segundo a Legenda de Perusa, respondeu que, se quisessem ganhar suas almas, deveriam buscar boa comida e bebida, levar tudo até o esconderijo deles na floresta e chamá-los para a refeição servindo-os com humildade. Ao final, deveriam fazer um primeiro pedido: Prometam não bater nem fazer mal a pessoa alguma por amor de Deus. Ensinou Francisco: É que se pedis tudo de uma vez, não vos darão ouvidos.
Sugeriu ainda que repetissem a oferta de refeição no dia seguinte e, como recompensa do cumprimento da promessa anterior, levassem mais comida. Aí, nessa oportunidade, pedissem a conversão deles. Conclui a biografia que os frades seguiram o conselho de Francisco e que os bandidos se transformaram em homens de bem.
A lição franciscana é clara no sentido de que nem sempre vamos conseguir tudo em uma primeira tentativa. Em alguns casos, precisamos insistir, tentar de novo, com muita dedicação e amor, para que os resultados surjam.
Ao lembrar a necessária decisão de renovação interior, a benfeitora Joanna de Ângelis orienta 4:
[…] não desistas de repetir as tentativas corretas até o momento em que se fixem como hábitos saudáveis.
Repete mil vezes a experiência que resultou negativa. Treina o sentimento novo e insiste, a fim de que se torne um fenômeno psicológico normal.
Não desistas do amor, já que ele, de variadas formas, chega a ti, sem desistência.
Durante nossa vida, é comum que ocorram algumas mudanças de residência, o que nos força a fazer obras e arrumações que ficam por aqui. As arrumações interiores são definitivas, levaremos conosco para sempre. Sigamos o roteiro de Santo Agostinho como um exercício diário e permanente, mas não deixemos de fazer, vez ou outra, essa arrumação das nossas gavetas interiores. Vale muito a pena e acelera nosso crescimento.
Referências:
- FRANCO, Divaldo Pereira. Celeiro de bênçãos. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: LEAL, 1974. cap. 5. ↩︎
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB, 2013. pt. 3, cap. XII, q. 919a. ↩︎
- MERINO, José Afonso. D. Quixote e S. Francisco. Dois loucos necessários. Braga: Franciscana, 2004. cap. Francisco e as cruzadas. ↩︎
- FRANCO, Divaldo Pereira. Vida plena. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: LEAL, 2021. cap. 27. ↩︎
Publicado originalmente no site Mundo Espírita, em setembro de 2024, neste link.