Razão e fé à luz da Doutrina Espírita

Publicado originalmente no site Mundo Espírita, em agosto de 2024, neste link.


Poucos espíritas desconhecem a frase Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão em todas as épocas da humanidade.

Na História da Filosofia, os temas razão e fé foram objeto de inúmeras reflexões, especialmente durante a Escolástica, uma das vertentes da Filosofia medieval, que foi do século IX até o início do século XVI, embora já comece a fenecer no século XIV, e cujo maior representante foi Tomás de Aquino.

Na excepcional obra História da Filosofia1 (de 7 volumes), em que lecionam sobre a Patrística e a Escolástica, Giovanni Reale e Dario Antiseri ponderam que a razão é posta predominantemente em função da fé, ou seja, a filosofia serve à teologia, para a interpretação da Escritura (exegese) ou para a construção doutrinária sistemática (dogmática), e a pesquisa racional autônoma deve ser vista no quadro do problema religioso da conversão dos infiéis, para quem é necessário propor a doutrina cristã com argumentação racional.

Os notáveis autores ainda ressaltam que2 não basta crer, que é preciso também compreender (intelligere) a fé, e que isso não se obtém somente interpretando os textos sacros ou mostrando suas possíveis implicações para a vida individual e comunitária dos homens, mas também demonstrando com base na razão as verdades aceitas pela fé ou, pelo menos, a sua logicidade ou a sua não-contraditoriedade com os princípios fundamentais da razão.

Com extrema maestria, Reale e Antiseri destacam que3 a utilização dos princípios racionais, primeiro platônicos e depois aristotélicos, era feita para demonstrar que as verdades da fé cristã não são disformes ou contrárias às exigências da razão humana, que, ao contrário, encontra nessas verdades a sua completa realização.

Agudamente racional, Kardec emprestou o seu extremado cuidado e bom senso ao estudar os então tidos como fenômenos das mesas girantes e, a partir de pesquisas guiadas pela razão, nega a existência do sobrenatural, que apenas pode ser definido como4 o natural ainda não conhecido. E eis que diversas assertivas trazidas pelos Espíritos Superiores na Codificação, a Ciência, com o seu rigor metodológico próprio, tem comprovado.

José Herculano Pires, no livro Agonia das religiões5, refere-se a esse modus operandi de Hippolyte Léon Denizard Rivail:

A necessidade de certeza na orientação do conhecimento, num mundo em que tudo se passa no plano das relações, exige um critério científico de avaliação dos dados obtidos na prática doutrinária. Ao não aceitar a revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao controle da razão, Kardec não violentou a intenção dos Espíritos superiores, que desejavam dele precisamente essa atitude.

Herculano, dito pelo Espírito Emmanuel como o metro que melhor mediu Kardec, ainda expõe, com notória propriedade, que o Codificador, à maneira de Descartes (1596-1650), pôs em dúvida todo o conhecimento religioso, e quando finalmente assentiu com o convite para comparecer a uma reunião, embora ali tenha constatado a realidade, não aceitou a sua interpretação espiritual, procurando explicar a chamada dança das mesas como possível efeito de forças conhecidas: a eletricidade, a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante, ou seja, não ficou nas hipóteses.6

É preciso que esse esforço de Kardec seja lembrado pelo Movimento Espírita, a fim de que o cuidado nas práticas doutrinárias seja constante, o que redundará na preservação da pureza da Doutrina Espírita, que não pode ser conspurcada pelos que se dizem seus seguidores, mediante ações e comportamentos que destoam do rigor com que trabalhou o memorável Codificador.

Conforme argutamente enfatiza Pires na obra citada acima7:

Pacientes e incessantes pesquisas – e não revelações místicas – levaram Kardec à descoberta científica da natureza espiritual do homem. E a prova de que realmente o levaram foi dada posteriormente pelas pesquisas científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje confirmadas até mesmo pelo avanço das investigações materiais, por cientistas modernos que alargam as dimensões das Ciências.

Kardec nunca foi tão atual, e o seu conhecido método tão necessário para que a Doutrina Espírita cumpra o seu desiderato de trazer a maturidade espiritual ao planeta.

Referências
  1. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus, 2003. v. 2, p. 125. ↩︎
  2. Op. cit. loc. cit. ↩︎
  3. Op. cit. p. 126. ↩︎
  4. PIRES, José Herculano. Introdução à filosofia Espírita. São Paulo: Paideia, 1983. cap. II, item 3. ↩︎
  5. __. Agonia das religiões. São Paulo: Paideia, 1976. cap. 9. ↩︎
  6. Op. cit. p. 84-85. ↩︎
  7. Op. cit. p. 87-88. ↩︎

Publicado originalmente no site Mundo Espírita, em agosto de 2024, neste link.

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Telma Mª S. Machado

Diretora de Comunicação e Delegada da ABRAME/SE