O Maior Feito do Maratonista Olímpico

No dia 29 de agosto de 2004, quando liderava a maratona de quarenta e dois quilômetros, que encerrou as Olimpíadas de Atenas, o corredor Vanderlei Cordeiro de Lima – que estava a sete quilômetros da chegada ao Estádio Panathinaiko e tinha cerca de vinte e cinco a trinta segundos de diferença para os demais corredores (distância aproximada de cento e cinquenta metros à frente dos demais) – teve a sua trajetória interceptada por um homem, que a tudo assistia da calçada e, até hoje, por motivos pouco explicados, lançou-se à frente do brasileiro, segurando-o, o que o fez perder segundos preciosos, até que populares intervieram e ele pôde retomar a sua marcha.

Visivelmente assustado com o acontecido, e tendo perdido a concentração, que é fundamental numa disputa tão acirrada como essa, o brasileiro atrapalhou-se um pouco e, logo adiante, foi ultrapassado por outros dois maratonistas, um italiano e outro norte-americano, vindo a perder a chance de receber a Medalha de Ouro.

Isso não abateu o brasileiro nem o fez desistir.

Vanderlei chegou ao final da prova em terceiro lugar, ainda fazendo aviãozinho (ou seja, de braços abertos, com movimentos característicos), demonstrando toda a sua alegria por tomar parte no pódio.

Quando perguntado se não teve vontade de desistir da prova depois do imprevisto, Vanderlei declarou: Sou brasileiro e não desisto nunca.

A lição que esse paranaense, nascido em Cruzeiro do Oeste, nos legou é muito maior do que teria sido o seu feito, caso tivesse ganho a Medalha de Ouro.

Vanderlei nos ensinou, com sua humildade, como se devem enfrentar os obstáculos e imprevistos da vida, sem desistir nunca, sem reclamar da sorte, fazendo o melhor ao alcance.

Nas entrevistas que se seguiram ao evento, ele fez questão de ressaltar que não sabia se conseguiria manter a dianteira nessa prova. Portanto, não colocou toda a responsabilidade naquele homem que o interceptou e fez com que perdesse segundos preciosos (a diferença entre os três primeiros colocados foi de poucos segundos) mas deixou claro que talvez tivesse sido ultrapassado, mesmo que o lamentável episódio não tivesse acontecido.

Vanderlei nunca teve vida fácil. De família pobre, contou que trabalhou na lavoura desde os sete anos, como cortador de cana-de-açúcar e corria descalço, quando garoto, porque não tinha dinheiro suficiente para comprar calçado apropriado para corridas. Então, preferia correr descalço, nas estradas rurais de terra da pequena cidade onde vivia. Ganhou seu primeiro par de tênis do diretor da escola que frequentava, para representar o colégio numa prova interescolar.

Nas suas entrevistas, após as Olimpíadas, mesmo quando os entrevistadores procuravam fazer com que inculpasse o ex-padre irlandês que o segurou, ou a organização da prova pelo incidente, jamais o encontramos criticando, reclamando ou colocando esse empecilho como razão de não ter vencido a maratona.

Quando a Confederação Brasileira de Atletismo reivindicou que a Medalha de Ouro fosse dada a ele também, pelo ocorrido, Vanderlei não endossou a proposta e disse que estava muito satisfeito com o terceiro lugar.

Quando provocado, ele desconversa e diz que prefere ficar com a parte boa do acontecido, com a oportunidade de ter levado o Brasil ao pódio e com a repercussão positiva desse lamentável equívoco. Afinal, nas próximas Olimpíadas, a vigilância seria redobrada sobre o público, para que o fato não se repetisse.

Embora não tendo recebido a Medalha de Ouro, Vanderlei foi agraciado pela Comissão Olímpica Internacional com a Medalha Pierre de Coubertin, ainda mais rara, visto que entregue apenas a atletas que se destacam de forma excepcional nas Olimpíadas, pelo alto grau de esportividade e espírito olímpico.

Antes dele, um dos poucos que recebeu essa premiação foi um velejador canadense, Lawrence Lemieux que, nas Olimpíadas de Seul, em 1988, mesmo estando em segundo lugar, abandonou a prova para salvar dois velejadores que haviam caído ao mar durante uma tormenta.

Vanderlei declarou que espera que sua atitude sirva para o crescimento do atletismo brasileiro, favorecendo, sobretudo as crianças pobres. São suas, ainda, as seguintes palavras: Tenho muito orgulho de minhas origens e de minhas escolhas, pois elas me levaram à conquista do maior sonho: a medalha olímpica. Descobri que ela não é só minha, pois carrega a alegria, o sofrimento e a torcida de todo brasileiro.1

Quando perguntado sobre o ocorrido, ele demonstra o poder do perdão de forma muito simples, ao dizer: Quando entrei no Estádio e vi que estava chegando em terceiro lugar, eu já tinha esquecido o ocorrido. Não consigo guardar um pingo de mágoa ou de rancor da pessoa que me atacou.2

Mais tarde, quando um outro atleta paranaense, Emanuel, quis, ao vivo, entregar-lhe, em um programa de TV, a sua Medalha de Ouro, que havia obtido no vôlei de praia, nas mesmas Olimpíadas, Vanderlei colocou a medalha no pescoço, num gesto de respeito ao colega, mas a devolveu em seguida, dizendo que já tinha tido o seu prêmio, que era o reconhecimento e a admiração das pessoas do mundo inteiro, que comentaram o seu gesto.

O maratonista brasileiro nos dá uma lição de grandeza. Não ganhou a medalha mais ambicionada por um atleta de alta performance, como ele, porém, ganhou a medalha da atitude, do caráter, da esportividade, da humildade. Aos brasileiros que vivemos dias de apreensão e tristeza com as notícias de escândalos rotineiros, Vanderlei deu mostras de que podemos ter esperanças porque a verdadeira alma do brasileiro está em pessoas como ele: simples e virtuoso, perseverante e sempre de bem com a vida, genuíno representante do nosso povo, ao contrário de uma minoria de infelizes equivocados que, diariamente, frequentam, de forma negativa, o nosso noticiário.

O Espírito Valérium, no livro Bem-aventurados os simples3, conta que um homem estava preso, cumprindo pena, com movimentação controlada pelos carcereiros. Vivia aparentemente tranquilo, como um pássaro na gaiola, com voz humilde, atitude humilde, olhar humilde, respostas humildes. Veio o dia em que foi solto e, após algumas horas de liberdade, a poucos passos da prisão, revoltou-se, insultou, agrediu os semelhantes e cometeu outro crime.

Comenta o benfeitor espiritual que a humildade não é, portanto, a calma constrangida na cadeia da prova, quando a pessoa encarcerada obedece forçosamente os regulamentos, sob pena de sofrer penalidades maiores. E conclui: Se você tem o direito de reclamar e não reclama, se você pode colocar a culpa nos outros e se cala, se você pode fazer o mal e procura estender o bem, então, de fato, a humildade começou a acender em você a luz da sua divina glória.

Neste ano de Olimpíadas, lembremos que a maior vitória, a verdadeira Medalha de Ouro, é daquele que busca a melhoria íntima, superando a prisão do ego, nos pequenos e grandes imprevistos e obstáculos do cotidiano.


Referências

  1. D’ÂNGELO, Kátia. Vanderlei Cordeiro de Lima: a maratona de uma vida. cap.1, p.111. ↩︎
  2. https://www.youtube.com/watch?v=zBYufdDIOrE ↩︎
  3. VIEIRA, Waldo. Bem-aventurados os simples. Pelo espírito Valérium. Rio de Janeiro: FEB. cap. Humildade. ↩︎
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Noeval de Quadros

Presidente da ABRAME e Desembargador aposentado