Carlos Torres Pastorino, no terceiro volume da sua Sabedoria do Evangelho1, apresenta uma excelente reflexão sobre a questão filosófica, que tem relação com a nossa evolução e com a aplicação da Lei de Justiça. A questão estudada é se o amor pode resgatar erros do passado e como isso acontece.
O autor comenta uma passagem do capítulo 7 do Evangelho de Lucas2, que cita um jantar na casa de um fariseu, para o qual Jesus fora convidado. Durante o jantar, uma mulher pecadora, com um vaso de alabastro com perfume, põe-se a chorar aos pés de Jesus, regando-os com lágrimas e enxugando-os com os cabelos, beijando-os e ungindo-os com o perfume.
Incomodado com a situação, o fariseu pensa consigo mesmo: Se esse homem fosse um profeta, saberia quem é, e de que classe, a mulher que o toca, pois é uma pecadora.
Percebendo o incômodo, Jesus apresenta uma fantástica parábola: Certo agiota tinha dois devedores; um lhe devia quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou a dívida de ambos. Qual deles, portanto o amará mais? Respondeu Simão: Suponho que aquele a quem mais perdoou. Replicou-lhe: Julgaste bem.
Naquele momento, Simão, o fariseu, que tinha feito aquele jantar em homenagem a Jesus, aparentemente mais por curiosidade que por verdadeira convicção, não compreendeu a profundidade do ensinamento.
Jesus prosseguiu: Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta mos regou com lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo; ela porém, desde que entrei, não cessou de beijar-me os pés. Não ungiste minha cabeça com óleo, mas esta, com perfume, ungiu meus pés. Por isso, te digo: foram resgatados seus muitos erros, porque ela amou muito, mas aquele a quem pouco se resgata, pouco ama. (grifamos)
Pastorino esclarece que não devemos confundir esse episódio com outro semelhante ocorrido mais tarde em Betânia, na casa de Simão, ex-leproso, quando Maria de Betânia, irmã de Marta, fez o mesmo gesto. Vale ressaltar ainda que a pecadora, na passagem citada, não era Maria de Magdala.
Quantos ensinamentos, quantas reflexões a serem feitas…
Vamos situar os personagens: Jesus, o Mestre por excelência, Modelo e Guia da Humanidade3; um fariseu; e uma mulher pecadora.
Os fariseus, segundo as lições de Allan Kardec4, formavam a seita mais influente na interpretação da teologia dos judeus. Ligados mais às práticas exteriores do culto e das cerimônias, afetavam grande severidade de princípios; mas, sob as aparências de meticulosa devoção, ocultavam costumes dissolutos, muito orgulho e acima de tudo, excessiva ânsia de dominação.
A mulher pecadora, provavelmente, era uma meretriz.
Lembremos da passagem de Mateus, cap. 21, vers. 315, quando Jesus ensina: Em verdade vos digo que as meretrizes e os cobradores de imposto conseguirão o reino dos céus antes de vós fariseus e doutores da lei.
Um fariseu puritano oferece um jantar para Jesus. Podemos pensar que, de certa forma, ele fazia uma homenagem, um gesto de amor para Jesus, embora com muitas reticências e distâncias. Tanto que não cumpre, por exemplo, as regras mínimas com relação à higiene. Parece ser o pouco amor a que se refere Jesus. Atitudes distantes e sóbrias, mas frias.
A pecadora, com certeza, apesar de seus muitos erros, é intensa no que faz. Primeiro pela coragem de invadir aquela residência para participar, de certa forma, do jantar. Muito emocionada com a oportunidade de estar tão perto de Jesus, ela chora e lava, com as lágrimas, os pés do Mestre, secando-os com seus próprios cabelos e ungindo-os com perfume. Gestos de amor e carinho.
Vamos analisar a parábola dos dois devedores, um com uma dívida dez vezes maior que a do outro. Os dois não têm como pagar. O agiota perdoa as dívidas. Qual devedor ficará mais feliz? Sem dúvida, o da dívida maior.
O ensinamento vem junto com a parábola. Aparentemente, estamos no jantar diante de dois devedores: a meretriz, com os pecados mais à mostra e, talvez, em maior quantidade naquela vida, e o publicano, com ares de puritanismo, mas também com os seus pecados, menos visíveis e, possivelmente, em número menor naquela vida.
Os dois amavam Jesus e ambos fizeram gestos de reconhecimento, de homenagem. Ela, gestos intensos e sinceros, expondo-se totalmente. Ele, gestos contidos e disfarçados, sem se expor ou se expondo muito pouco.
Jesus afirma que ela teve resgatados seus muitos erros por ter amado muito e deixa a entender que o fariseu pouco resgatou por ter amado pouco.
Assim, fica claro que, através do amor, é possível o resgate de erros, o reajuste e o reequilíbrio com relação ao ontem.
Vem à nossa lembrança a afirmação de Pedro6: Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre a multidão de pecados.
Vejamos que Pedro, o apóstolo, fala em amor intenso, em outra tradução, amor profundo, muito próximo das atitudes da pecadora da nossa história.
Mas vamos a Allan Kardec, que, na obra O Céu e o Inferno, ou A Justiça Divina segundo o Espiritismo7, estuda e esclarece esse tema no tópico intitulado Código Penal da Vida Futura.
Kardec observa que toda imperfeição da alma gera sofrimento. Quanto mais imperfeições, mais sofrimento. Que sofremos pelo mal que fazemos e que esse sofrimento continua após a morte do corpo. Ensina também que a duração do castigo depende da melhora do espírito culpado 8: Deste modo o Espírito é sempre o árbitro da própria sorte, podendo prolongar os sofrimentos pela pertinácia no mal, ou suavizá-los e anulá-los pela prática do bem.
Aqui, percebemos a perfeita pedagogia das Leis de Deus, que, através da dor, nos impulsiona para o progresso.
Ensina ainda Kardec que o arrependimento, apesar de importante, é o primeiro passo, sendo necessárias a expiação e a reparação.
Vemos que o arrependimento, a expiação, que é o sofrimento advindo do erro e do arrependimento, e a própria reparação são fases do aprendizado evolutivo.
Reparação, ensina Kardec, consiste em fazer o bem àqueles a quem se fez o mal ou fazer o que deveria ser feito e foi descurado, cumprindo com os deveres desprezados, as missões não preenchidas, praticando o bem em compensação ao mal praticado. Percebe-se que reparação é um caminho de amor e aprendizado. O Codificador conclui ensinando que, na reparação, o Espírito progride aproveitando-se do próprio passado.
O benfeitor Camilo, pelas mãos abençoadas de Raul Teixeira, no livro Justiça e Amor, comentando sobre o Código Penal da Vida Futura, faz interessantes reflexões. Por exemplo, no capítulo intitulado Justiça e Consciência9, lembra que as leis de Deus se acham na consciência10 e afirma que Um sistema perfeito de autoimpressão, à base de sutilíssimas energias, deixa registrado na viva tela perispiritual se o indivíduo deixou de agir consoante as leis sábias do Criador por imaturidade do senso moral, por falta de mais profunda percepção da consciência, ou por negligência, má vontade ou mesmo por maldade.
Camilo, estudando Kardec, já tinha lembrado que, com nossos atos infelizes, ferimos as Leis de Deus, deixando essa marca no perispírito.
Fica claro, portanto, que a responsabilidade por nossos atos infelizes está relacionada à nossa evolução, com a compreensão que temos das Leis, com nossa maturidade espiritual ou maturidade do senso moral, como ensina Allan Kardec11. Também a nossa responsabilidade está vinculada à intenção, ao desejo, ao pretendido verdadeiramente na ação infeliz.
O ato infeliz deixa marca no perispírito, marca essa que caracteriza nossa imperfeição e gera sofrimento. Na lição de Kardec, o caminho será o do arrependimento, da expiação e da reparação para o reequilíbrio dessas sutis energias.
Podemos concluir, assim, que o aprendizado provocado pela dor, pela expiação, equilibra a energia perispiritual, pois foi corrigida a imperfeição. Assim também o aprendizado gerado pelos atos verdadeiros de amor, uma vez que, amando, estamos acelerando o processo de aprendizagem que viria com a dor futura, pois, aprendendo com o amor, também corrigimos a imperfeição.
Como ensinou Jesus para o fariseu e para a meretriz, o amor salva!
Sigamos as lições de Jesus com as luzes da veneranda Doutrina Espírita e tenhamos amor intenso para que aceleremos nossa evolução, antecipando a quitação das nossas dívidas morais, que, para a maioria dos habitantes do nosso Planeta, ainda são muitas.
Referências
- PASTORINO, Carlos Torres. Sabedoria do Evangelho. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1967. v. 3. Item O amor salva. ↩︎
- PASTORINO, Carlos Torres. Sabedoria do Evangelho. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1967. v. 3. Item O amor salva. ↩︎
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB, 2013. pt. 3, cap. I, q. 625. ↩︎
- ______________. O Evangelho segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. Introdução, III Notícias históricas, Fariseus. ↩︎
- PASTORINO, Carlos Torres. Sabedoria do Evangelho. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1967. v. 3. Item O amor salva. ↩︎
- BÍBLIA, N. T. I Pedro. Português. O novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1966. cap. 4, vers. 8. ↩︎
- KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. pt. 1, cap. VII, item Código penal da vida futura. ↩︎
- Op. cit. pt. 1, cap. VII, item Código penal da vida futura, 13º. ↩︎
- TEIXEIRA, J. Raul. Justiça e Amor. Pelo Espírito Camilo. Niterói: Fráter, 1996. cap. II, item 4. ↩︎
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB, 2013. pt. 3, cap. I, q. 621. ↩︎
- _________________. O Evangelho segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. cap. XVII, item 4. ↩︎
Nota
Este artigo foi originalmente publicado no site Mundo Espírita. Para acessar o conteúdo original, clique aqui.