Ecdises e crescimento

Há mais de duas décadas li e memorizei uma frase que espelha sobremaneira a virtude da paciência:

“A natureza nos ensina a difícil lição dos frutos que amadurecem devagar: semear… e depois colher”.

Na marcha incessante rumo à superação dos obstáculos que nos mantêm à margem da integralidade, imprescindível assimilar que as conquistas são facultadas pelo roteiro, não o troféu de chegada para quem passou desapercebido ou desatento aos desafios indispensáveis para a auto superação. Ao longo da caminhada, deixaremos incontáveis roupagens das quais nos revestimos momentaneamente e que já não caberiam na consciência ampliada e enriquecida.

Didaticamente, a natureza nos convida a refletir sobre a estreita relação entre mudanças e crescimento. Refiro-me às ecdises, um recurso fisiológico que, por exemplo, os crustáceos se utilizam para crescer, já que possuem exoesqueleto (esqueleto externo). “A ecdise (Gr.1 Ekdyein, despir-se) ou muda, é necessária para o crescimento do corpo, pois o exoesqueleto não está vivo e não acompanha o crescimento do animal. Muito do funcionamento dos crustáceos, incluindo sua reprodução, comportamento e vários processos metabólicos, é diretamente afetado pela fisiologia do ciclo da muda” 2. Esse processo nos remete a algumas reflexões para além do aspecto biológico.

No roteiro da vida temos a oportunidade de abandonar os diversos exoesqueletos que inibem a nossa ascensão para os relevantes propósitos da existência, na marcha inexorável do progresso espiritual.

Em face da limitação de linhas deste artigo, apenas um exemplo darei: a bela, rica, comovente e inspiradora história do apóstolo Paulo de Tarso.

Saulo tivera como preceptor o preparado Gamaliel, um rabino que ostentava um perfil conciliatório e tolerante, algo incomum nos fariseus de então 3. Não obstante, intrépido, estudioso e inteligente o jovem Saulo, logo se destacando perante o seu povo, desprezava Jesus e perseguia implacavelmente os seus seguidores. De todas as suas ações perseguidoras, a mais lembrada se relaciona com a morte, por apedrejamento, de Estevão, considerado o primeiro mártir do cristianismo.

Segundo o Cap. 8 dos Atos dos Apóstolos 4, Saulo estava de acordo com a execução e, naquele dia, desencadeou-se uma grande perseguição contra a igreja de Jerusalém, ocasionando uma dispersão das pessoas, com exceção dos apóstolos, pelas regiões da Judéia e da Samaria. Quanto a Saulo, a narrativa informa que ele “devastava a igreja: entrando pelas casas, arrancava homens e mulheres e metia-os na prisão”.

Mas o impetuoso Saulo foi convidado, em um dia inolvidável, a largar, para sempre, esse exoesqueleto que lhe impedia de sentir o calor de uma luz imperecível. Na estrada de Damasco, e para lá se dirigia com autorização dos chefes dos sacerdotes para prender qualquer um que se referisse ao nome de Jesus, ele ouve aquela voz de melodia intraduzível e uma luz que os seus olhos, acostumados às sombras abissais dos equívocos repetidos, não suportaram. A cegueira momentânea de Saulo, aliás, tem uma forte simbologia, na medida em que significa a necessidade de fechar os olhos para o simulacro de vida que até então levava, e abri-los para a eternidade gloriosa que já se lhe inaugurava aqui na Terra.

E Paulo foi impertérrito. Abraçou a missão que o Cristo lhe confiou e espalhou a Boa Nova, levando-a, por exemplo, para Antioquia, Chipre, Frígia, Ásia Menor, Macedônia, Corinto, Éfeso, Atenas, Espanha, Roma etc.

A lei superior do universo, pondera Léon Denis, é o progresso incessante, a ascensão dos seres para Deus, foco das perfeições. Das profundezas do abismo da vida, por uma rota infinita e uma evolução constante, nos aproximamos d’Ele. No fundo de cada alma está depositado o germe de todas as faculdades, de todos os poderes cabendo a ela fazê-los eclodir por seus esforços e seus trabalhos (O porquê da Vida, capítulo VI).

Todos temos à frente, descortinada e indimensional, a Estrada de Damasco. Se é certo que é do nosso livre arbítrio ignorar os convites que a vida nos faz para redefinição de rumos e valores, também o é que, de outro lado, estaremos vinculados aos efeitos da rebeldia e da renitência. Assim, conforme bem aponta um trecho da belíssima composição Tocando em frente, de Almir Sater e Renato Teixeira, “Cada um de nós compõe a sua história, e cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz”.


[1] Grego.

[2] HICKMAN, Cleveland P. Princípios integrados de zoologia. Tradução: Antônio Carlos Marques; revisão técnica Antônio Carlos Marques. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009, p. 375.

[3] Bastante conferir a sua intervenção constante no Cap. 5, 34 a 39 dos Atos dos Apóstolos.

[4] A Bíblia de Jerusalém. Editora Paulus, 2002.


Imagem: Matthew T Rader (Unsplash)

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Telma Mª S. Machado

Diretora de Comunicação e Delegada da ABRAME (SE); Graduada em Ciências Biológicas e em Direito; Pós-Graduada em Direito Processual Público; Juíza Federal da Seção Judiciária de Sergipe; Mestre em Filosofia e Escritora.