Dédalo, Ícaro e o limite prudencial

Os que têm mais de quarenta anos provavelmente ainda guardam na mente os versos da canção intitulada Sonho de Ícaro. E quando o cantor entoa “o que faz de mim ser o que sou é gostar de ir por onde ninguém for”, aos ouvidos de um jovem soa como a própria busca de rumos originais, estradas nunca percorridas, mares nunca dantes navegados, ares jamais cruzados.

Na mitologia grega, “Ícaro era filho de Dédalo, um dos homens mais criativos e habilidosos de Atenas, conhecido por suas invenções e pela perfeição de seus trabalhos manuais, simbolizando a engenhosidade humana. Um de seus maiores feitos foi o Labirinto, construído a pedido do rei Minos, de Creta, para aprisionar o Minotauro. Por ter ajudado a filha de Minos a fugir com um amante, Dédalo provocou a ira do rei que, como punição, ordenou que ele e seu filho Ícaro fossem jogados no Labirinto. Dédalo sabia que a sua prisão era intransponível, e que Minos controlava mar e terra, sendo impossível escapar por estes meios. […]. Dédalo projetou asas, juntando penas de aves de vários tamanhos, amarrando-as com fios e fixando-as com cera, para que não se descolassem. […]. Equipou Ícaro e o ensinou a voar. Então, antes do voo final, advertiu seu filho de que deveriam voar a uma altura média, nem tão próximo do sol, para que o calor não derretesse a cera que colava as penas, nem tão baixo, que o mar pudesse molhá-las. […]. Ícaro deslumbrou-se com a bela imagem do sol e, sentindo-se atraído, voou em sua direção, esquecendo-se das orientações de seu pai. A cera de suas asas começou rapidamente a derreter e logo Ícaro caiu no mar1.

De início observa-se que o pai de Ícaro esclareceu-lhe quanto às condições das asas e das consequências de se voar a uma altitude em que o calor pudesse danificá-las, ou tão baixo que o mar as molhasse, ou seja, o “caminho do meio”, da ponderação, era a melhor rota. Mas Ícaro empolgou-se com o voo, com o sol que aí representava o desafio por excelência, o inalcançável, e provavelmente com a sensação de estar acima de tudo e de todos.

Na idade média a audácia de Ícaro era veementemente condenada, entendida como arrogância, prepotência, sacrilégio até, eis que na época vigiam diversas proibições em desvendar determinados conhecimentos, tais como os segredos de Deus e da natureza.

A modernidade trouxe um novo olhar sobre a audácia de Ícaro em “voar” além de parâmetros previamente estabelecidos, embora não endosse a ausência de prudência quanto aos riscos evidenciados por uma clareza fotofóbica. Voar além é até compreensível, e dessas “ousadias” é que muitas coisas foram conquistadas pela humanidade, porém a aproximação com o sol, astro com o potencial de derreter a cera das emendas das suas asas traduz-se em presunção ou mesmo em displicência que o fizeram ir muito além da possibilidade que adquirira graças à sagacidade do pai, e que o colocava momentaneamente acima da capacidade dos demais mortais. Provavelmente a vaidade juvenil acrescida da empolgação e da imprudência obnubilou Ícaro de fazer uma escolha racional, eis que, sob nenhuma hipótese da narrativa, pode-se imaginá-lo como um suicida.

No que toca à lamentação de Dédalo quanto à própria habilidade, exprime a recorrente atitude dos pais de se culparem por tudo que de ruim acontece aos filhos, como se pudessem ser mais do que amorosos genitores e educadores. Abstraem o livre arbítrio do outro e a difícil constatação de que o aprendizado não se dá apenas pelo desejo e competência do mestre em ensinar, mas também pela decisão e empenho do aluno em aprender e vivenciar. Nós cristãos devemos refletir sobre isso, eis que O próprio Mestre veio até nós para facilitar o nosso caminho até a perfeição relativa, trazendo-nos a concepção de Um Deus que é Amor, Justiça e Misericórdia, mas, ainda assim, muitos continuamos a ser cristão sem Cristo, ou seja, emocionamo-nos com as lições e exemplos de Jesus, mas não as concretizamos.

Dédalo não foi radical, ele não disse que Ícaro não podia voar alto ou baixo: deixou uma boa margem de movimentação para o rebento, conforme percebemos no advérbio de intensidade “tão”, que ali denota o excesso desnecessário, eis que uma altura razoável já seria o suficiente para fugir do cativeiro sem arriscar a vida. Difícil muitas vezes é cada subjetividade descobrir ou mesmo aceitar o razoável. Quanto à primeira hipótese, faltam os “olhos para ver”, sendo que a vida pede atenção para “enxergar” a realidade subjacente. Na segunda hipótese está a atitude de Ícaro, que, mesmo instruído pelo pai, abstraiu o limite prudencial.

Vários de nós nos identificamos com a rebeldia de Ícaro, mas, por misericórdia de Deus, temos incontáveis oportunidades de resgate e reparação, conforme tão bem explica a Doutrina Espírita.

Sonho, racionalidade e ponderação formam um tripé para que a vida não se torne desinteressante e nem se transforme em mera aventura. “Do alto, coração, mais alto, coração […]”.

Referências

[1] Texto disponível neste link;

[2] Texto retirado da música referida no 1º parágrafo.

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Telma Mª S. Machado

Diretora de Comunicação e Delegada da ABRAME/SE