De política e questões irritantes

Publicado originalmente no site Mundo Espírita, em agosto de 2024, neste link.


Em vossas reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à política e às questões irritantes. A tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quando esta for boa.1

Allan Kardec, nessa correspondência a espíritas de Lyon, na França, fez interessantes observações. Destaquei essa pelo que temos vivido atualmente no Movimento Espírita brasileiro, uma vez que recente momento político em nosso país dividiu famílias e grupos e afastou amigos, com reflexos em nossas Casas Espíritas e em nosso Movimento, o que nos traz muita preocupação. Entretanto, como o Codificador já tinha abordado esse tema em 1862, fica claro que a questão não é nova.

É natural que muitos de nós tenham escolhido uma das duas principais correntes partidárias atuais brasileiras. Natural também que cada um tenha a convicção de que sua escolha é a que mais se adequa ao Cristianismo e aos ensinamentos Espíritas. Evidente que nosso voto e nossa vinculação político-partidária poderá ser extremamente relevante no campo social, mas não devem adentrar nas atividades da Casa Espírita a ponto de atrapalhar os trabalhos e separar os trabalhadores.

É importante sabermos administrar essas escolhas e os conflitos que delas advêm. Posicionamentos políticos radicais dividem famílias, separam amigos de longa data e atrapalham nosso trabalho nas Casas Espíritas e no Movimento Espírita, nos quais temos companheiros de ambos os lados políticos.

Um dos argumentos mais usados nas discussões é a importância das ideias políticas na melhoria da sociedade. Sustentamos com razão, senão não defenderíamos tal ideário, que o país e a sociedade ganhariam com a implementação de metas projetadas. Daí trazermos, indevidamente, a discussão político-partidária para o debate espírita.

Allan Kardec enfrenta esse argumento:

Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar. Eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras. Deixai a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos que buscarem arrastar-vos por uma via perigosa.

Nas Casas Espíritas, no Movimento Espírita, devemos, pois, buscar a causa espírita, os livros espíritas, a moral espírita. Há tanto por fazer no campo dos estudos. Há tanto por construir no campo da divulgação dos princípios espíritas. Há tantas lágrimas para secar com as verdades espíritas, tanta loucura e tanto suicídio que podem ser afastados com a luz do Espiritismo. Não há tempo a perder!

Fica ainda um amargor na garganta, que é a questão da convivência e do trabalho, ao lado daqueles que, muitas vezes, vemos como opositores, incoerentes e até loucos.

Voltemos a Allan Kardec, que indaga aos Espíritos2:

É acertada a beneficência, quando praticada exclusivamente entre pessoas da mesma opinião, da mesma crença, ou do mesmo partido?

A resposta é de São Luiz: Não, porquanto precisamente o espírito de seita e de partido é que precisa ser abolido, visto que são irmãos todos os homens. O verdadeiro cristão vê somente irmãos em seus semelhantes e não procura saber, antes de socorrer o necessitado, qual a sua crença, ou a sua opinião, seja sobre o que for. Obedeceria o cristão, porventura, ao preceito de Jesus Cristo, segundo o qual devemos amar os nossos inimigos, se repelisse o desgraçado, por professar uma crença diferente da sua? Socorra-o, portanto, sem lhe pedir contas à consciência, pois, se for um inimigo da religião, esse será o meio de conseguir que ele a ame; repelindo-o, faria que a odiasse.

É chegada a hora de retomarmos os trabalhos vendo como irmão o confrade da Casa Espírita que discorda de nós politicamente. Devemos dar as mãos a ele, tomar a iniciativa de chamá-lo de volta para o trabalho, para a tarefa do bem, independentemente da crença e da manifestação política dele fora da Casa Espírita.

Em nossas manifestações em geral, mesmo fora da Casa Espírita, temos que procurar falar mais do positivo e tecer menos críticas ou provocações que não se adequam às propostas de amor e fraternidade e dificultam nossos relacionamentos com reflexos negativos no trabalho do bem.

Torna a nos ensinar Kardec3:

Também se reconhecem os bons Espíritos pela prudente reserva que guardam sobre todos os assuntos que possam trazer comprometimento. […]

Portanto, sejamos prudentes também em nossas publicações.

Logo mais, essa onda passará, os ânimos se esfriarão e muitos que se aliaram à causa X ou à Y poderão dela se afastar. Alguns líderes poderão trocar de partido político e as ideias mudarem, mas a nossa Doutrina Espírita ficará de pé.

Sigamos as diretrizes do nosso Codificador e, cuidadosamente, vamos afastar de nossas Casas Espíritas e do nosso Movimento Espírita tudo o que se refere à política e a questões irritantes.

Temos muito trabalho pela frente. Há muito para se construir e cada um de nós é peça essencial nesse Movimento.

  1. KARDEC, Allan. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos. Ano 1862, v. 2. São Paulo: EDICEL, 1999. Resposta à mensagem de Ano Novo dos espíritas lioneses. ↩︎
  2. _______________. O Evangelho segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2017. cap. XIII, item 20. ↩︎
  3. _______________. O Livro dos Médiuns. Brasília: FEB, 2018. pt. 2, cap. XXIV, item 267 §16. ↩︎

Publicado originalmente no site Mundo Espírita, em agosto de 2024, neste link.

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Marcelo Anátocles Ferreira

Desembargador e Associado da ABRAME.