Considerações sobre o Aborto

I – Introdução

A ABRAME (Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas) tem suas bases na Doutrina Espírita surgida em 1857, em Paris, França, através do Prof. Hypolite Leon Denizard Rivail, que passou a ser conhecido pelo pseudônimo de Allan Kardec, quando lançou a obra “O Livro dos Espíritos”.

O direito à vida é postulado básico da Doutrina Espírita, assinalando a pergunta 880 da citada obra:

Qual o primeiro de todos os direitos naturais do homem?

O de viver. Por isso é que ninguém tem o de atentar contra a vida do seu semelhante, nem de fazer o que quer que possa comprometer-lhe a existência corporal.1

A ABRAME, portanto, alinha sua atuação em prestígio aos direitos do homem, substancialmente em favor da vida.

II- Bem supremo, a civilização veio consagrando a proteção da vida humana.

 Preceitua a Constituição da nossa República Federativa no seu art.5º:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade…”.

O texto constitucional é bem explícito, pondo-se em relevo também a adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678 de 6.11.1992) que trata do direito à vida: “Art. 4º, 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Leciona a Professora Maria Helena Diniz:

O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integralidade existencial, consequentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa.

[…]

A vida é igual para todos os seres humanos. Como, então, se poderia falar em aborto? Se a vida humana é um bem indisponível, se dela não pode dispor livremente nem mesmo seu titular para consentir validamente que outrem o mate, pois esse consenso não terá o poder de afastar a punição, como admitir o aborto, em que a vítima é incapaz de defender-se, não podendo clamar por seus direitos? Como acatar o aborto, que acoberta, em si, seu verdadeiro conceito jurídico: assassinato de um ser humano inocente e indefeso? Se a vida ocupa o mais alto lugar da hierarquia de valores, se toda vida humana goza da mesma inviolabilidade constitucional, como seria possível a edição de uma lei contra ela? A descriminalização do aborto não seria uma incoerência no sistema jurídico? Quem admitir o direito ao aborto deveria indicar o princípio jurídico do qual ele derivaria, ou seja, demonstrar científica e juridicamente qual princípio albergaria valor superior ao da vida humana, que permitiria sua retirada do primeiro lugar na escala dos valores? A vida extrauterina teria um valor maior do que a intrauterina? Se não se levantasse a voz para a defesa da vida de um ser humano inocente, não soaria falso tudo que se dissesse sobre direitos humanos desrespeitados? Se não houver respeito à vida de um ser humano indefeso e inocente, por que iria alguém respeitar o direito a um lar, a um trabalho, a alimentos, à honra, à imagem etc.? Como se poderá falar em direitos humanos se não houver a preocupação com a coerência lógica, espezinhando o direito de nascer? 2

III – A legislação civil, em harmonia com o texto constitucional, protege a vida intrauterina, cabendo ressaltar o art. 2º do Código Civil vigente:

Art. 2º. “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

No âmbito do Poder Legislativo, vários projetos estão em curso para o reforço dos direitos do nascituro, tal como o Projeto de Lei n. 478/2007, que prevê:

“Art. 3º O nascituro adquire personalidade jurídica ao nascer com vida, mas sua natureza humana é reconhecida desde a concepção, conferindo-lhe proteção jurídica através deste estatuto e da lei civil e penal.

Parágrafo único. O nascituro goza da expectativa do direito à vida, à integridade física, à honra, à imagem e de todos os demais direitos da personalidade”.

Assim, inarredável a conclusão de que o maior direito do nascituro preservado é o direito de viver.

IV – A legislação brasileira tipifica o aborto como crime (Código Penal – Parte Especial, Titulo I, Dos Crimes Contra a Pessoa, Capítulo I, Dos Crimes Contra a Vida, incidindo as regras dos arts. 124 a 128 do estatuto repressivo (Decreto-lei 2848 de 7.12.1940, vigorando a partir de 1º de janeiro de 1942).

Preceitua o Código Penal:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:  (Vide ADPF 54)

Pena – detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54)

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:  (Vide ADPF 54)

Aborto necessário

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Com o avanço das técnicas da medicina e com a força das postulações das pessoas do sexo feminino a questão do aborto tomou vulto e passou a ser acolhido em muitas nações do mundo sob justificativas várias. Em nosso País tornou-se também uma bandeira política ocupando diuturnamente as pautas do Poder Legislativo com muitas tentativas da legalizar a intervenção buscando a interrupção da vida do feto e de outro lado correntes sustentando a ampliação mais objetiva dos direitos daqueles que estão no processo de conquistar o direito de completar a vida já existente e almejada, os nascituros.

Com a possibilidade científica de detectar-se com precisão anomalias do feto buscou-se a intervenção do Poder Judiciário via Supremo Tribunal Federal na chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) na qual ficou decidido, já com trânsito em julgado “declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez do feto anencéfalo é conduta tipificada neste artigo”, decisão por maioria. Inobstante as sérias controvérsias, diagnosticada a anencefalia, o aborto pode ser feito pela gestante, o que de nosso ver passou a largo dos textos legais, porque a proteção da vida é garantida pela Constituição, o direito de viver, inobstante em tempo efêmero em nome da dignidade da mulher, segundo ficou assentado em abril de 2012. Grande risco em face do precoce diagnóstico de enfermidades do nascituro que abre espaço para outras interpretações a inviabilizarem o direito de viver e o desequilíbrio orgânico não pode servir de base à inviabilização da vida.

Tramita no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442) relatora A M. Rosa Weber visando obter a declaração parcial de que os artigos 124 e 126 do Código Penal não foram recepcionados pelo texto constitucional vigente, podendo o aborto ser feito até as primeiras 12 semanas. Não se fala mais em anomalia fetal ou inviabilidade da vida, mas agora em aborto fundado em questão de saúde pública, direito da mulher ao seu próprio corpo, não se cogitando da vida do nascituro que estará ao sabor da liberalidade da sua futura mãe em autorizá-lo ou não a exercer o direito que já tem o de compor com o seu nascimento o honroso quadro da conviver com o seu semelhante. Importa considerar que a Ministra Relatora já lançou o seu voto favorável à interrupção da gestação até as 12 primeiras semanas. O processo face a grande repercussão foi retirado da pauta de julgamentos e será objeto de deliberação do Supremo Tribunal Federal.

No teatro atual em que as legislações mundiais protegem a fauna e a flora, prestigiando o meio ambiente sadio de oportunidades a todos, resulta grave incongruência que no generoso solo brasileiro, forças se organizam para retirar o bem mais importante daqueles se encontram nos ventres maternos, considerando-os como objetos descartáveis.

Assim, a nobreza da gestante jamais pode ser reconhecida ao rejeitar o ser que está vivendo no seu corpo mas não lhe pertence para impedir-lhe a vida e as oportunidades do progresso e da felicidade do existir ainda que por segundos, porque a lei divina é a lei da vida e os homens não tem o direito de impedirem o sagrado direito de viver.

Cabe acentuar que o pensamento espírita elucida na pergunta 344 do Livro dos Espíritos:

“344. Em que momento a alma se une ao corpo?

— A união começa na concepção, mas não se completa senão no instante do nascimento. Desde o momento da concepção, o Espírito designado para tomar determinado corpo a ele se liga por um laço fluídico que se vai encurtando cada vez mais, até o instante em que a criança vem à luz; o grito que então se escapa de seus lábios anuncia que a criança entrou para o número dos vivos e dos servos de Deus”.[3]3

Conquanto a laicidade do Estado, importa anotar que o pensamento religioso tem extrema importância na organização social e nas regras do direito regulatório das mesmas, pelo que quando se afinam o texto legal com a regra religiosa, tal constatação longe de servir como empecilho à boa administração da Justiça, deve ser ponderada no que diz respeito aos preceitos da preservação dos direitos fundamentais do ser humano, entre os quais avulta o direito de viver, o direito à vida.  

Que as autoridades que irão dizer do direito e da Justiça e que os poderes da República possam rever os equívocos e omissões para que o direito glorifique a Justiça e que a vida irrigue a sociedade brasileira, exemplificando para o mundo o direito de todos, o direito de viver.

Por derradeiro, não há como deixar de analisar a extrema incoerência do aborto, eis que sendo o nascituro titular do direito, e o mais importante, de viver, não conte com o direito de defesa, princípio básico de todo o regime democrático, que estipula a ampla defesa, conforme o texto constitucional, cabendo a lembrança de que o fundador da religião cristã, Jesus Cristo, foi objeto de um julgamento sumário sem qualquer direito de defesa e ao arrepio das regras jurídicas vigentes no Direito Romano e Hebraico, não havendo que se repetir, simbolicamente, a sentença de morte que também se pretende imputar aos que se encontram no processo de gestação para alcançar o nascimento.

  1. Allan Kardec. O Livro dos Espíritos. 93ª ed. Brasília: Ed. FEB, 2013, p. 392. ↩︎
  2. Maria Helena Diniz. O estado atual do biodireito: questões polêmicas ético-jurídicas 12ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2025, p. 41 e 47. ↩︎
  3. Allan Kardec. O Livro dos Espíritos. 93ª ed. Brasília: Ed. FEB, 2013, p. 194. ↩︎
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Carlos José Martins Gomes

Conselheiro Consultivo da ABRAME e Desembargador