Vinte e cinco anos de magistratura! Uma vida! Tristezas, alegrias, frustrações, satisfação em fazer o bem, a boa prática da Justiça. Assim tem sido o exercício da profissão que abracei e que considero quase como um sacerdócio. Durante todo esse tempo, sempre tive a preocupação em deixar os estagiários à vontade durante a realização das audiências. Ao final de cada um daqueles atos processuais, costumo ministrar uma pequena e singela aula. Noto claramente que alguns prestam bastante atenção, outros nem tanto, pois parecem que estão ali apenas cumprindo uma obrigação. A vida de estudante é assim: uns passam pela faculdade, mas nem sempre a faculdade passa por eles. Talvez aí esteja um dos principais motivos pelos quais nos deparamos com tantos profissionais desqualificados. Diga-se, de passagem, essa triste constatação não é um privilégio do curso de Direito. Em todos os ramos do conhecimento humano, há excelentes, bons, ruins e péssimos profissionais.
O pôr do sol esplendoroso de Palmas/Tocantins, já se avizinhava pela réstia da janela de meu humilde gabinete que fica defronte ao paço municipal. Notei com uma certa preocupação que ao fundo da sala estava um homem num silêncio sepulcral!! Aparentava aproximadamente uns quarenta anos de idade. Estava de óculos escuros e semblante fechado. Diante daquela cena, cheguei a imaginar: hoje é meu dia! Estou perdido! Na minha mente aquele sujeito havia esperado todo mundo ir embora para acabar com minha singela e insignificante passagem pela terra! O coração pulsava fortemente! A respiração estava ofegante como nunca! Quantos tiros ele me daria? Confesso que já sentia a dor no peito, o fôlego encurtando, o aumento da sudorese, enfim…. a morte!!! Fiquei ainda a imaginar: se tivesse sorte até poderia ir para o céu! Céu? Imagine um juiz ir para aquele lugar!
Decidi levantar-me bem devagarinho… Eu poderia até desencarnar, mas morreria firme que nem um soldado que não se acovarda diante do inimigo. Se fosse para o inferno, pelo menos estaria em posição de sentido e preparado para bater continência para o diabo. Conforme a conveniência, cumprimentá-lo-ia com um sonoro “sim senhor!” ou com um mero “não senhor!” Afinal de contas, o diabo não merece nenhuma espécie de consideração. Deve ser simplesmente desprezado. Após alguns longos minutos fitando e fazendo gestos suaves na direção daquele cidadão pude perceber que ele não esboçava qualquer tipo de reação. Muito lentamente e, como quem não queria nada, fui me aproximando dele. Não sei onde achei tanta coragem! Meu coração continuava demasiadamente acelerado, queria sair pela boca a todo custo. O estômago esfriava, as pernas tremiam que nem vara verde… O suor teimava em rolar pelo rosto. Fiquei tonto… Achei até que iria desmaiar… Os pensamentos a mil… Estava, porém, determinado a abordá-lo e assim o fiz com o devido cuidado.
Tenho uma mania (que a considero muito interessante) de chamar as pessoas de meu irmão. É, sem dúvida, uma boa estratégia e costuma acalmar os ânimos dos mais exaltados. Pensei: vai que hoje também funciona! Cheguei bem perto dele, respirei fundo, e, como num passe de mágica dei-lhe um leve toque no ombro direito… Silêncio total! De repente ele me perguntou:
– É o doutor juiz?
Confesso que me deu vontade de responder que não! Talvez, diante daquelas circunstâncias, fosse melhor dizer que era o promotor, um advogado, o defensor público, a estagiária, sei lá o que mais! A consciência, porém, veio-me à tona imediatamente! Resolvi, como de costume, falar a verdade, pois como diziam os antigos, a mentira tem pernas curtas.
– Sim! Sou o juiz! O que você deseja?
Respondeu ele de forma bem ponderada:
– Doutor, não sei se o senhor notou, mas desde às 13h30min, estou aqui sentado, ouvindo os jurisdicionados, os causídicos, dentre os quais a nobre defensora pública, a representante do “parquet” estadual, as testemunhas, enfim, todos aqueles que se encontravam neste seleto recinto. É que eu tenho uma audição extremamente aguçada e chegava a ouvir até o balbuciamento dos lábios das pessoas que por aqui passaram. O senhor entende?
Cá com meus botões, fiquei a pensar: que sujeito estranho! Bom… Se eu fosse morrer, pelos menos tinha sido morto por um cabra qualificado, sabido. Quem sabe antes do tiro de misericórdia, dava para dialogar um pouco, tentar uma conciliação… Tive até a intenção de chamar as meninas que trabalham comigo no cartório para, eventualmente, rezarem um pai nosso, a prece de Cáritas, recitar a oração de São Francisco, ou até mesmo o poema da gratidão de Amélia Rodrigues, psicografado por Divaldo Pereira Franco, por sinal, um dos mais belos que eu conheço. Quem sabe daria tempo de chamar o SAMU! Se elas estivessem dispostas, até poderiam morrer comigo! Considerei que, muito embora corresse o risco de levar um “balaço”, era melhor morrer sozinho. Resolvi então indagá-lo, agora com voz firme e sem qualquer espécie de embargo:
– Afinal de contas rapaz, quem é você? O que quer de mim?
– Meu nome é Euler, estudante de direito, faço o quinto período.
Pensei: quem faz direito, não deve agir errado!
– E por qual motivo você está aqui até agora?
– Vou contar para o senhor. É que sou cego (retirou os óculos escuros e pude notar que falava a verdade).
Diante daquela cena fiquei bastante emocionado. Meus pensamentos divagaram em turbilhão… Passei a imaginar numa velocidade supersônica. Como poderia desconfiar da idoneidade de um cidadão naquela condição? Ele era inofensivo e talvez estivesse esperando por uma ajuda minha.
O papo foi encompridando e, já com a adrenalina razoavelmente controlada, disse-lhe:
Sim, meu irmão, continue. Como você ia dizendo…
Pois é, doutor, eu vim “assistir” a umas audiências com o senhor, mas, infelizmente, o colega que me trouxe até aqui, esqueceu-se de mim e foi embora. Agora me vejo nessa situação!
Você confia em mim?
– Claro! Como eu iria duvidar do senhor? Afinal de contas pelo visto eu não tenho outra opção, pois estamos só nós dois aqui.
– É verdade.
Peguei-o pelo braço esquerdo e o envolvi com meu braço direito. Fiz com que se levantasse, dizendo-lhe:
– Para onde você quer ir?
– Para a faculdade. Hoje tenho aula sobre direitos humanos.
– Não se preocupe, vou deixá-lo lá!
Coloquei-o para sentar-se no banco dianteiro do passageiro de meu carro e fomos conversando até o local por ele indicado.
– E então, Euler, o que você faz na vida, além de estudar?
– Sou professor do Município de Palmas. Dou aulas para deficientes visuais.
– Quanto você ganha por mês?
– Dois mil reais.
– É casado? Tem filhos?
– Sim, sou casado, tenho quatro filhos, pago aluguel, faculdade e tenho muitas outras despesas.
– Quanto você gasta com o aluguel e com o curso de direito?
– Com o aluguel, setecentos reais e com a faculdade setecentos e cinquenta.
– Moço de Deus! Quer dizer que você passa por muitas dificuldades financeiras!
– É verdade, doutor. Tem dia que lá em casa quase não tem o que comer. As coisas estão muito difíceis.
Deixei-o na faculdade, porém naquela noite não consegui dormir. No dia seguinte chamei Lara, minha fiel escudeira, que inclusive era professora naquele estabelecimento de ensino, pedi-lhe que localizasse o telefone da faculdade e à tardinha fiz uma única ligação. Conversei com a diretora e lhe solicitei que, se possível, arrumasse uma bolsa de estudos para aquele rapaz, pois ele necessitava muito. Garantiu-me ela que intercederia junto aos donos da instituição e talvez conseguisse o abatimento de uns dez por cento. Pensei: já era alguma coisa! Como diziam os antigos: do saco, pelo menos o cordão!
Passaram-se aproximadamente dois anos e meio, quando o sol escaldante de Palmas, teimosamente, mais uma vez, tentava adentrar por aquela mesma janela e eis que aquele rapaz apareceu no cartório e disse às meninas que gostaria de falar comigo.
Fui ao seu encontro. Ele estava com um envelope grande, de cor marrom entre os dedos da mão direita e ao ser avisado de que eu me encontrava à sua frente falou:
– Boa tarde, doutor! Vim trazer o convite de minha formatura! Gostaria muito que o senhor fosse, pois, inclusive, será um dos homenageados.
– Você conseguiu aqueles dez por cento de desconto nas mensalidades?
– Não, doutor! Eu consegui foi cem por cento! Nunca mais paguei a faculdade! Quero inclusive, agradecer do fundo da minha alma por aquele ato de caridade que o senhor me fez.
Abraçamo-nos e choramos bastante. Naquele instante mágico, uma voz suave e terna pareceu ter soprado aos meus ouvidos, uma frase que ecoará na minha consciência para o resto da vida: APENAS UMA LIGAÇÃO!
Eu fiz a minha! Você já fez a sua?
(Texto publicado em 2016, no livro “A Justiça Além dos Autos”, editado pela Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do CNJ)