No volume II da obra História da Filosofia, os autores italianos Giovanni Reale e Dario Antiseri ponderam sobre a importância da Bíblia no âmbito filosófico:
A Bíblia, portanto, se apresenta como “palavra de Deus”. E, como tal, a sua mensagem é objeto de fé. Quem acredita poder pôr a fé entre parênteses e ler a Bíblia como “simples cientista”, como se lê um texto de filosofia de Platão ou de Aristóteles, na realidade está realizando um tipo de operação que é contra o espírito desse texto. A Bíblia muda completamente de significado à medida que é lida acreditando-se ou não que se trata de “palavra de Deus”. Entretanto, embora não sendo uma “filosofia” no sentido grego do termo, a visão geral da realidade e do homem que a Bíblia nos apresenta, no que se refere a alguns conteúdos essenciais dos quais a filosofia também trata, contém uma série de ideias fundamentais que tem uma relevância também filosófica de primeira ordem. Aliás, trata-se de ideias tão importantes que, não só para os crentes, mas também para os incrédulos, a difusão da mensagem bíblica mudou de modo irreversível a fisionomia espiritual do Ocidente.1
Especificamente quanto ao Novo Testamento, a beleza com que os eminentes autores explicam as suas visões sobre o significado da palavra do Cristo é um poema de versos livres que toca profundamente os corações:
Em suma, pode-se dizer que a palavra de Cristo contida no Novo Testamento (a qual se apresenta como revelação que completa, aperfeiçoa e coroa a revelação dos profetas contida no Antigo Testamento) produziu uma revolução de tal alcance que mudou todos os termos de todos os problemas que o homem se propusera em filosofia no passado e passou a condicionar também os termos nos quais o homem os proporia no futuro. Em outras palavras, a mensagem bíblica condicionará aqueles que a aceitam, obviamente de modo positivo, mas também condicionará aqueles que a rejeitam: em primeiro lugar, como termo dialético de uma antítese (a antítese só tem sentido, sempre, em função da tese à qual se contrapõe); e, mais globalmente, como um verdadeiro “horizonte” espiritual que iria impor-se de tal modo a ponto de não ser mais suscetível de eliminação. Para se entender o que estamos dizendo, é paradigmático o título (que representa todo um programa espiritual) do célebre ensaio do idealista e não-crente Benedetto Croce, Perche non possiamo non dirci cristiani (“Por que não podemos deixar de nos dizer cristãos”), o que significa precisamente que, uma vez surgido, o cristianismo tornou-se um horizonte intransponível.2
Ressaltam os professores supracitados que, diante desse horizonte, depois da difusão da mensagem bíblica serão possíveis somente as seguintes posições: a) filosofar na fé, ou seja, crendo; b) filosofar procurando distinguir os âmbitos da “razão” e da “fé”, embora crendo; c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo. Não será mais possível “filosofar fora da fé, no sentido de filosofar como se a mensagem bíblica nunca tivesse feito seu ingresso na história. Por essa razão, o horizonte bíblico permanece um horizonte estruturalmente intransponível, no sentido que esclarecemos, isto é, no sentido de um horizonte para além do qual já não podemos nos colocar, tanto quem crê como quem não crê”.3
Ainda complementam as assertivas supracitadas, listando as principais ideias bíblicas que influíram no pensamento ocidental, ou seja, as mais significativas contribuições filosóficas da mensagem bíblica:
- o conceito de monoteísmo que substitui o politeísmo grego;
- o criacionismo a partir do nada, que faz o ser depender de um ato de vontade de Deus, e que se contrapõe à proibição de Parmênides da geração do ser a partir do não ser;
- uma concepção do mundo fortemente antropocêntrica e a lei posta que não tem precedentes na filosofia helênica, que foi mais por Deus cosmocêntrica;
- uma interpretação da lei moral diretamente ligada à vontade de Deus: Deus seria a fonte definitiva da lei moral e o dever do homem estaria em obedecer seus mandamentos. Para o grego, ao contrário, a lei teria o seu fundamento na natureza e a ela também Deus estaria vinculado;
- uma desobediência à lei teria causado a queda do homem;
- o resgate desta situação depende não do homem, mas da iniciativa gratuita de Deus; para os gregos – em particular para os órficos e para os filósofos que neles se inspiraram – dependeria, ao contrário, apenas do homem;
- a Providência de que fala a Bíblia, diversamente da grega (em particular socrática e estoica), dirige-se ao homem individual; […];
- essa atenção de Deus pelo homem revoluciona completamente o conceito do amor em vários sentidos: primeiramente, porque o amor cristão (ágape) é uma característica eminentemente divina, enquanto, para os gregos, Deus era amado e não amante; em segundo lugar, porque a dimensão do eros helênico era aquisitiva, enquanto a do ágape cristão é donativa;
- tal inversão não diz respeito apenas ao tema do amor, mas a toda a série dos valores dos gregos, que o cristianismo ilumina sobre a base do discurso das bem-aventuranças em que se privilegia a dimensão da humildade e da mansidão;
- igualmente importante é a mudança de perspectiva na escatologia – que não está mais ancorada apenas no dogma da imortalidade da alma, mas também no da ressurreição dos corpos –;
- é significativo, por fim, o novo sentido da história, como progresso para a salvação e para a realização do reino de Deus: o desenvolvimento da história, segundo os gregos, tem um andamento circular (a história não tem início nem fim, mas retorna sempre idêntica), enquanto o bíblico-cristão acontece segundo um trajeto retilíneo, que tem um fim e uma consumação (o Juízo universal).4
Na vasta seara da Filosofia Espírita, mais ampla do que a Filosofia acadêmica, tendo em vista que a primeira considera as relações entre encarnados–encarnados, encarnados–desencarnados, desencarnados–desencarnados, ainda levando em conta o presente, o passado e o futuro, ou seja, as relações interexistenciais, conforme sobressai da Lei da Reencarnação, não se pode deixar de recorrer a Herculano Pires para uma maior compreensão desse vértice do triângulo que o próprio Emmanuel explica tão didaticamente:
Podemos tomar o Espiritismo, simbolizado desse modo, como um triângulo de forças espirituais. “A ciência e a Filosofia vinculam à Terra essa figura simbólica, porém, a Religião é o ângulo divino que a liga ao céu. No seu aspecto científico e filosófico, a doutrina será sempre um campo nobre de investigações humanas, como outros movimentos coletivos, de natureza intelectual, que visam ao aperfeiçoamento da Humanidade. No aspecto religioso, todavia, repousa a sua grandeza divina, por constituir a restauração do Evangelho de Jesus-Cristo, estabelecendo a renovação definitiva do homem, para a grandeza do seu imenso futuro espiritual”.5
Também de Emmanuel é esta poética definição sobre o “sublime triângulo”:
A Ciência, a Filosofia e a Religião constituem o triângulo sobre o qual a Doutrina Espírita assenta as próprias bases, preparando a Humanidade do presente para a vitória suprema do Amor e da Sabedoria no grande futuro.
Recorremos às três vigorosas sínteses da Codificação Kardequiana, para comentar, com mais segurança, o tríplice aspecto de nossos princípios redentores.
Com a Ciência, asseverou o grande missionário:
“A fé sólida é aquela que pode encarar a razão, face a face.”
Com a Filosofia, afirmou peremptório:
“Nascer, viver, morrer e renascer de novo, progredindo sempre, tal é a lei.”
Com a Religião disse bem alto:
“Fora da caridade não há salvação.”6
E Herculano Pires discorre com maestria sobre Filosofia Espírita, um dos três vértices do triângulo sublime. Inicialmente ele explica que:
Uma introdução à Filosofia Espírita exige longa pesquisa de suas raízes nas coordenadas da evolução humana: o tempo e o pensamento. A História da Filosofia é um continuum, que nasce da primeira indagação do homem sobre a Natureza e depois sobre a vida e sobre ele mesmo. Da Magia à Religião e desta à Filosofia o pensamento se desenrola numa sequência ininterrupta de formulações pessoais que se encadeiam em processo dialético. Não existe a sequência tantas vezes apresentada de Magia-Religião-Ciência-Filosofia. O que realmente existe é um paralelismo de ação mental que parte da primeira tomada de consciência do Mundo pelo homem. Na primeira paralela temos a sequência Magia-Religião, que se desenvolve no plano da afetividade. Na segunda paralela temos a sequência Experiência-Ciência-Filosofia, que se desenvolve no plano da razão. Entre as duas, interligando o fluido do sentimento e da razão, temos a faixa de terra da práxis, onde o homem opera desenvolvendo a sua capacidade de manusear as coisas e os seres. Desse manuseio nasce o complexo do Conhecimento, delta em que vão desaguar as correntes paralelas para a fusão que dará forma ao dualismo Cultura–Civilização.7
Ainda enfatiza que Kardec, rejeitado pela cultura dominante, tal como se deu com O Cristo em seu tempo, enfrentou os poderes da época e proclamou o advento da Era Espírita, elaborou os seus fundamentos, apoiado nas bases tríplices da Ciência, da Filosofia e da Religião, e que a Filosofia Espírita definiu-se como o fulcro de um novo ciclo da evolução humana, não se tratando de um fato ocasional ou isolado, mas do resultado de todo o processo histórico do pensamento, ou da razão, como queria Hegel (1770-1831), em seu desenrolar na temporalidade.8
A Doutrina Espírita é leque de luz e a abertura desse leque, possibilitado pelo conhecimento dos seus aspectos científico, filosófico e religioso, é proporcional à assimilação das verdades descortinadas pela Espiritualidade Superior, sob a direção do nosso amado Mestre Jesus, Governador da Terra.
O termo Filosofia é composto de duas palavras de origem grega: Philos, que significa amor, amizade, e Sophia, que se traduz como sabedoria ou conhecimento. Atribui-se a Pitágoras de Samos (571 a 496 a.C.) a invenção da palavra, que, solicitado por um rei a demonstrar seu saber, respondeu-lhe que não era sábio, mas, Filósofo, ou seja, amigo da sabedoria.
Sejamos amigos do saber, especialmente do saber espírita, que nos esclarece sobre a vida e seu propósito.
Referências
- REALE, Giovanni; ANRISERI, Dario. História da Filosofia. Volume II. São Paulo: Editora Paulus, 2ª edição, 2005, p. 08. ↩︎
- Ibidem, p 378. ↩︎
- Ibidem, p. 09. ↩︎
- Ibidem, p. 10. ↩︎
- XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo espírito Emmanuel. 28. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008. ↩︎
- Fonte de paz, capítulo 13. ↩︎
- PIRES. José Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: Paideia, 1983, p. 5. ↩︎
- Ibidem, p. 6. ↩︎
Publicação original
Publicado originalmente no site Mundo Espírita, em junho de 2025. Clique aqui para acessar.