Houvesse uma análise lógico-racional, tão recomendada por Kardec, teríamos a serenidade oriunda da certeza de que caminhamos para a luz; que a felicidade, consequente do progresso inexorável, é o nosso destino, o que nos leva a concluir que o nosso fascínio pelos Contos de Fada apenas reflete o que está gravado em nosso Espírito.
A Doutrina Espírita, indubitavelmente, resgata o homem da crença lúgubre e sombria de um inferno eterno, trazendo esclarecimentos que levam ao consolo de que, pela misericórdia de Deus, temos as divinas oportunidades de renascer para resgatar, recomeçar para acertar, repetir para aprender1.
Afinal, as duas asas a que o Espírito Emmanuel se refere no livro Pensamento e Vida, quais sejam, o amor e a sabedoria, não se constroem em poucas existências; demandam várias experiências na carne e no plano espiritual para as respectivas tessituras.
Assim, o existencialismo Espírita, tão bem explicado por José Herculano Pires no livro Introdução à Filosofia Espírita, capítulo VI, traz luminoso entendimento sobre o determinismo da felicidade humana.
De início, há de se pontuar que o existencialismo é um movimento filosófico que ganhou notoriedade no século XX, embora remonte ao século XIX. Esse movimento comportava alguns grupos com seus respectivos representantes. Entre eles está Sartre, segundo o qual, a existência precede a essência, ou seja, para ele a essência é construída a partir das nossas escolhas durante a existência e Deus não interfere na liberdade humana. Sartre, que era ateu, acreditava que os seres humanos eram os únicos responsáveis pelas suas decisões, e que, portanto, o homem é condenado à liberdade. A Doutrina Espírita tem alguns pontos de contato com essa visão sobre a responsabilidade humana, tal como pontua José Herculano Pires, na medida em que, não obstante enfatizar o amor e a misericórdia de Deus e de Jesus, assim como o auxílio que recebemos dos Espíritos protetores, somos os construtores do nosso destino.
Eis as sábias palavras de Herculano Pires2:
[…] o que chamamos de existencialismo Espírita é a Filosofia Espírita da Existência, a parte dessa Filosofia que encara o homem no mundo, da mesma maneira que o ser a que se referia Heidegger3. Até o aparecimento do Espiritismo o pensamento espiritualista era platônico: admitia o pressuposto de uma realidade metafísica da qual decorria toda a realidade física. O Espiritismo assumiu a posição aristotélica: buscar na realidade concreta a sua essência possível e dela partir para as induções metafísicas. “O Livro dos Espíritos” começa com a afirmação da existência de Deus, mas já vimos que essa existência se prova na própria existência do mundo, que Deus pode ser encontrado num simples lançar de olhos sobre a natureza.
Pires então faz a ponte entre o existencialismo Espírita e o magnífico livro O problema do ser, do destino e da dor, de Léon Denis, afirmando que nesse livro podemos ver como a posição existencial da Filosofia Espírita se entrosa na corrente existencial da atualidade.
E é Denis, o consolidador da Doutrina Espírita, que, poeticamente, adverte-nos de que a alma oculta profundezas onde o pensamento raras vezes desce e que sua superfície, como a do mar, é muitas vezes agitada, mas por baixo se estendem regiões inacessíveis às tempestades, onde dormem as potências ocultas, que esperam nosso chamamento para emergirem e aparecerem; que o chamamento raras vezes se faz ouvir e o homem agita-se em sua indigência, ignorante dos tesouros inapreciáveis que nele repousam.4
Afortunadamente, nenhum Espírito ficará eternamente na ignorância. Todos caminham para a luz. A escuridão é apenas uma fase a ser transposta, assim como as tristezas e as dores são apenas desafios (criados por nós mesmos) da caminhada.
O grande dramaturgo inglês William Shakespeare disse que nós somos feitos da mesma matéria que os sonhos e o querido Francisco Cândido Xavier afirmou que a vida se constrói nos sonhos e se concretiza no amor.
De acordo com tudo que aprendemos com a Doutrina Espírita, nosso sonho de felicidade se concretizará no tempo escolhido por cada um de nós, porque somos os engenheiros e os arquitetos do nosso porvir.
Nessa fase tão desafiadora para a Humanidade, precisamos cantar, ainda que sem a bela voz do grupo ABBA, I’ll cross the stream, I have a dream (Eu vou cruzar a correnteza, eu tenho um sonho), plenamente cientes de que o sonho de ser feliz é uma realidade inafastável a ser construída por nós mesmos. Sim, Contos de Fada falam da realidade.
Referências
- FRANCO, Divaldo Pereira. As primícias do Reino. Pelo Espírito Amélia Rodrigues. Salvador: LEAL, 2015. ↩︎
- PIRES, J. Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: Paideia, 1983. pt. VI. ↩︎
- Martin Heidegger foi um filósofo, escritor, professor e reitor universitário alemão. Viveu entre 1889-1976. ↩︎
- DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor. Brasília: FEB, versão digital 2013. p. 273. ↩︎
Publicado no site Mundo Espirita em julho/2024;