Amor, O Banquete de Platão e O Natal de Jesus

O amor é a excelência dos sentimentos, mas é equivocado afastá-lo da razão, sob fundamento de uma suposta antítese entre emoção e racionalidade, quando, a bem da verdade, essa última tem o condão de facultar um saudável direcionamento da primeira.

É notório que a “vigência do amor no ser humano constitui a mais alta conquista do desenvolvimento psicológico e também ético, porquanto este estágio que surge como experiência do sentimento concretiza-se em emoções profundas e libertadoras que facultam a compreensão dos objetivos essenciais da existência humana, como capítulo valioso da vida(1)

Quando o apóstolo Paulo, com divina inspiração, disse que o amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”, está falando de um sentimento lúcido e forte o bastante para identificar o sofrimento, reafirmar-se enquanto remédio, anunciar ser a esperança e a fortaleza.

Tão belo e instigante sentimento é tema de uma obra do ateniense Platão: “O Banquete”. Na introdução da edição que utilizarei neste artigo, há um resumo dos diálogos dessa obra que possibilita diversas interpretações.

Atentemos, então, para um resumo da narração que Apaladoro faz do que ouvira de Aristodemo, acerca do corrido durante um banquete acontecido na casa de Agáton, um poeta, em favor de alguns amigos. A certa altura do “Symposium” um dos presentes (Pausânias) traz a ideia de falarem sobre o amor, emendando Erixímaco que cada um fizesse um elogio ao amor. Temos, pois, as falas, pela ordem, de Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agáton e a seguir o discurso de Sócrates, que recorre à personagem Diotima, da Mantineia, sacerdotisa, para explicar o amor.

O amor, diz Fedro, é o mais velho dos deuses, o que mais ama os homens e por eles é amado. É o que inspira o bem e impede o mal […]. A tradição, a mitologia inspira a Fedro um discurso empolgado e retórico, próprio de um jovem que se entusiasma com a glória literária. Pausânias é o segundo a falar. Distingue, no amor, duas espécies: o Amor Celeste e o Amor Vulgar. O primeiro é próprio das almas nobres; ao segundo só os homens grosseiros prestam culto. Erixímaco mostra, a seguir, utilizando para isso os conhecimentos médicos, que o amor não exerce apenas influência nas almas. É ele ainda quem dá harmonia ao corpo. […]. Aristófanes, o comediante piedoso e conformista, conta, por sua vez, um curioso mito relativo à origem do homem. Na origem, os homens eram dotados de órgãos duplos. Eram extremamente ágeis e ousados. De tanta ousadia, que resolveram, certa vez, atacar o próprio Olimpo. Os deuses, enfurecidos, resolveram vingar-se, e os homens foram separados em duas metades. O amor nasceu daí: é a eterna procura, o eterno desejo que os homens sentem de procurar a outra metade que um dia perderam. Quando alguém a encontra, encontra também a felicidade. Agáton, o anfitrião, é o último a elogiar o amor. Critica os oradores que o precederam pois eles elogiaram, de preferência, os benefícios do amor sem se darem ao trabalho de indagar qual a origem e a natureza do amor. Muito ao contrário do que pensa Fedro, o amor é o mais jovem dos deuses. Dotado de uma eterna mocidade […]. Sutil, penetra nos corações, sem que estes possam percebê-lo. A sua natureza não se dá bem com a violência e é por isso que todos a ele se submetem voluntariamente. […]. Inspira as artes, dá àquele que submete o dom da poesia. A própria vida é obra desse grande artista (2).

Em seguida, virá o belíssimo discurso de Sócrates, assim resumido também:

[…] quando Sócrates narra a história que lhe contara a misteriosa mulher de Mantineia, Platão expressa a sua própria maneira de julgar o amor. Todos os outros convivas consideram o amor como um deus. Diotima ou Sócrates – ou mais exatamente Platão – pensam que o amor é simplesmente um desejo, uma privação. Desejo e privação não condizem com o que é perfeito e belo. O amor não pode, então, ser um deus; é simplesmente um ‘meio termo’ entre as qualidades herdadas do pai, Poros – o espírito de cobiça – e da mãe, Penia – o espírito do desespero. É um ‘intermediário’, um grande gênio ao qual cabe transmitir aos homens as ordens dos deuses e aos deuses as preces do homem. Deste modo, o amor não é um bem em si mesmo. Vale apenas por aquilo a que tende e só tem sentido quando submetido à inteligência, à razão. (3)

Da narrativa de Sócrates sobre o que ouviu de Diotima, transcrevo algumas partes, para que possamos saborear um pouco desse banquete que Platão nos oferece, pela voz dessa figura da Mantineia:

[…] há muitos modos de dar satisfação ao amor e, entre eles, o de procurar as riquezas, os esportes, a filosofia, aos quais, todavia, não se aplicam correntemente os nomes de amante e amado; apenas uma determinada espécie de amor e aos seus sequazes é que se dá o nome que de direito pertence ao gênero todo: amor, amar, amante. […]. Há uma lenda que diz que os que se amam nada mais fazem senão procurar a sua metade. Eu, porém, creio que amar não é procurar nem a metade nem o todo, se, meu caro, isso não for bom […]. O amor consiste do desejo da posse perpétua do bem (4).

Ainda quanto ao amor, os professores italianos Reale e Antiseri explicam muito bem a diferença entre o eros grego, o amor cristão (ágape) e a graça, no volume II de História da Filosofia, o que nos ajuda a perceber quão superior é a concepção de amor de Jesus.

Asseveram os doutrinadores acima, que:

[…] em um de seus cumes mais significativos, o pensamento grego criou, sobretudo com Platão, a admirável teoria do eros, […]. Mas o eros não é Deus, porque é desejo de perfeição, tensão mediadora que torna possível a elevação do sensível ao supra-sensível, força que tende a conquistar a dimensão do divino. O eros grego é falta-e-posse em uma conexão estrutural entendida em sentido dinâmico e, por isso, é força de conquista e ascensão, que se acende sobretudo à luz da beleza. (5)

Ponderam ainda que “o novo conceito bíblico de “amor” (ágape) é de natureza bem diferente. O amor não é primordialmente “subida” do homem, mas “descida” de Deus em direção aos homens”. Que para os gregos, “é o homem que ama, não Deus. Para os cristãos, ésobretudo Deus que ama: o homem só pode amar na dimensão do novo amor realizando uma revolução interior radical e assemelhando o seu comportamento ao de Deus” (6) .

Ressaltam que a “doutrina cristã do amor (ágape, charitas) opera uma revolução estrutural em relação a concepção grega do eros. Para o grego Deus não pode amar porque o amor pressupõe falta e, portanto, imperfeição”, acrescentando que para “Platão, por exemplo, o eros deriva da falta do belo e do desejo de possui-lo e, portanto, em dimensão aquisitiva e ascensiva, é próprio do homem e não de Deus” (7) .

Ainda enfatizam que mesmo para o eminente filósofo Aristóteles“ o Motor imóvel é amado e não amante (move como objeto de amor)”, ao passo que o amor cristão“ é, ao contrário, primeiramente próprio de Deus, que ama em dimensão donativa, como superabundância de bem” (8) .

Não há dúvidas de que a mensagem de Jesus assinalou a mais profunda revolução de valores da história humana.

Dentro de poucos dias comemoraremos o nascimento dAquele que nos descortinou iguarias espirituais incomparáveis. Que tenhamos a sensibilidade de perceber que o Natal é muito mais do que uma oportunidade social de saborearmos comidas, bebidas e entretenimento com amigos e familiares: é uma emocionante ocasião para reavivarmos a memória no sentido de que o amor é o principal alimento da nossa existência.

Assim:

Que o Cristo nasça na gente
A cada dia que chega.
Que a Sua mensagem seja
O bálsamo da nossa mente,
A estrada e a certeza
De que os dias vindouros,
Embora sem prata nem ouro,
Senão plenos de riqueza
Na fé, na luz que irradia
Do Seu coração magnânimo,
Cujo Amor é o ânimo
A ensolarar nossos dias

Referências

  1. ÂNGELIS, Joanna. Amor imbatível amor. Psicografia de Divaldo Pereira Franco. Salvador: Leal, 1998, p. 248.
  2. PLATÃO. O Banquete. Editora Nova Fronteira, 2011, p. 10/11).
  3. Ibidem, p. 11.
  4. PLATÃO. O Banquete. Companhia das letras, 2011, p. 62/63).
  5. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia, volumes II. Tradução: Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 18).
  6. Ibidem, p. 19.
  7. Ibidem, loc. cit.
  8. Ibidem, loc. cit.
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Telma Mª S. Machado

Diretora de Comunicação e Delegada da ABRAME (SE); Graduada em Ciências Biológicas e em Direito; Pós-Graduada em Direito Processual Público; Juíza Federal da Seção Judiciária de Sergipe; Mestre em Filosofia e Escritora.