Nas asas do pensamento

O filósofo e matemático francês Descartes (1596-1650), ao pronunciar a frase “Cogito, ergo sum” (“penso, logo existo”) provavelmente não tinha a exata noção da importância e simbologia de que ela se revestiria na construção do pensamento racional. A investigação, a análise e a metodologia defendidas na sua famosa obra “O Discurso sobre o Método”, publicada em 1637, em Leiden (França), tornaram-se importantes ferrramentas, inclusive, para o avanço da ciência.

Para além do aspecto meramente biológico, através do pensamento é possível visitar regiões materialmente insondáveis, que sobrelevam a perspectiva existencial, nem sempre decodificadas de modo a proporcionar as múltiplas conquistas necessárias à autopacificação.

A racionalidade, portanto, longe de afastar as emoções inerentes à condição humana, é valiosa ferramenta para a rejeição das mais variadas espécies de fanatismo. Por sua vez, a emoção colore os sentidos para que as deduções oriundas do pensamento racional possibilitem a real assimilação da beleza, da justiça, do amor…

O pensamento, sem dúvida, é a grande fonte onde deságuam as nossas dúvidas, as nossas certezas (ainda que momentâneas), inquietações, angústias, ansiedades e esperança. Com impressionante rapidez, ele pode nos levar a estados existenciais conflitantes. Não por acaso, o Mestre inesquecível, ciente do que é capaz de fazer o poder do pensamento, alertou-nos a não pecar “por pensamentos, palavras e ações”.

Nas asas do pensamento voam as nossas vibrações e sintonias, daí porque as ondas que ele cria têm gênese em nossa própria essência, às vezes ainda encoberta.

A liberdade de pensar, aliás, é algo que, não raras vezes, tem sido a grande força e consolação da humanidade de todas as épocas, basta volvermos o olhar para o passado e lembrarmos os povos submetidos pelas guerras que a história noticia.

Giuseppe Fortunino Francesco Verdi (1813-1901), grande compositor de óperas da Itália, na época em que aquela Nação se via oprimida pela Áustria, compôs Nabuco, com libreto de Temístocles Solera, ópera que teve retumbante sucesso em 1842, e cujo enredo se referia à conquista de Judá pelo rei Nabucodonosor e à escravidão do povo hebreu na Babilônia. Um dos segredos de tamanho êxito deveu-se ao coro dos escravos hebreus em que sobressaía a frase “Va pensiero sull’ali dorate” (“Vai pensamento, em asas douradas”) e no qual está representada a desolação do povo judeu com a subjugação a que foi submetido. Os italianos, dominados pela Áustria, identificaram-se com a tristeza ali representada. O trecho a seguir, retirado de um artigo (“Verdi: como vencer a censura”) publicado por Carlos Heitor Coni na Folha de São Paulo, em 09/11/2007, resume bem a passagem:

[…] a Itália vivia o seu próprio cativeiro, dominada pela Áustria. Verdi compreendeu a intenção de Solera: transpor o drama dos hebreus dominados junto aos rios da Babilônia para a sua própria pátria espezinhada pelo grande império dos Habsburgos. Não conseguiu dormir naquela noite. Os versos estavam em sua cabeça: “Va pensiero”. Até hoje, esse coro de escravos serve de hino para todos os oprimidos em qualquer parte do mundo.

Dias depois, a ópera estava pronta e encenada. O povo não apenas gostou da ópera, mas da mensagem que ela trazia. O nome de Verdi virou anagrama: “Vittorio Emanuelle, Re d’Italia”. Verdi passou a ser a senha de liberdade. Mais uma vez, um artista demonstrou que a censura não atrapalha a inteligência – quando há inteligência.[1]

A Doutrina Espírita apresenta vasto estudo sobre o quanto o pensamento modela o ser.

Evidentemente, quanto mais se é atrasado moralmente, maior será o manuseio do pensamento para construir cenas de rancor, de vingança e de cureldade, assim como o bem que habita uma mente mais evoluída espiritualmente arquitetará paisagens de paz, de bem estar e de harmonia. Tais disposições mentais redundam em ideoplastias que se propagam em nossa essência psicológica e transcendental, eis que o poder dos pensamentos, hoje não mais se duvida, afeta o ser espiritual e, consequentemente, o ser corpóreo, pelo arrastamento de correntes vibratórias.

A harmonia do corpo e da mente, portanto, está em direta e indissociável relação com os pensamentos que abrigamos, daí a necessidade de vigiá-los e educá-los, através do permanente cultivo de sentimentos relacionados à bondade, à ética, ao perdão etc.

Jesus ofertou a receita ideal para a harmonia individual e coletiva ao exortar o homen a se livrar dos malefícios de ações, palavras e pensamentos destrutivos, sombrios, desarmonizadores, que transportam, em asas opacas, sofrimento e infelicidade.

As asas douradas, portanto, são construídas pela força de vontade, pela determinação de iluminar as sombras do inconsciente, a fim de que essa claridade leve ao caminho da sublimação. Somos todos passarinhos e:

Sendo pássaros,

Não podemos rastejar.

Respeitemos nossas asas.

As estrelas são a meta,

As sombras até as ocultam,

Mas não as removem de lá.


[1] https://academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=51&infoid=6403&sid=579, acesso em 15 de março de 2009.

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Telma Mª S. Machado

Diretora de Comunicação e Delegada da ABRAME (SE); Graduada em Ciências Biológicas e em Direito; Pós-Graduada em Direito Processual Público; Juíza Federal da Seção Judiciária de Sergipe; Mestre em Filosofia e Escritora.