“Magister dixit” (“o mestre falou”). Com essa expressão, os escolásticos referiam-se a Aristóteles, cujo ensinamento encerrava a discussão. Ainda hoje essa prática é utilizada quando participantes de uma querela lançam proposições de alguém tido como mestre em determinada matéria, com o intuito de defender uma posição contraditada por outrem, quando os argumentos expostos não são suficientes para convencer os demais.
Mas o que foi a Escolástica, período no qual era tão comum o uso dessa expressão? Explicam os autores Reale e Antiseri, no Volume II da magnífica obra História da Filosofia, que “a Escolástica, na sua gênese e nos seus desenvolvimentos, representa toda a era medieval”, que mais do que um conjunto de doutrinas, entende-se por Escolástica a filosofia e a teologia que eram ensinadas nas escolas medievais (01), ainda acrescentando:
Por Escolástica entendemos precisamente aquele corpo doutrinário que, inicialmente de forma bastante inorgânica e depois de modo sempre mais sistemático, foi elaborado nesses centros de estudo, nos quais encontramos, dedicados a escrever e a ensinar, homens criativos, frequentemente dotados de grande capacidade de crítica.
Com esse binômio “razão” e “fé” queremos indicar o “programa de pesquisa” fundamental da Escolástica, que vai do uso acrítico da razão e da consequente aceitação da doutrina cristã com base na “autoridade” às primeiras tentativas de penetração racional da Revelação e às construções sistemáticas, que têm e interpretam as verdades cristãs de forma argumentada, e de agudeza lógica (02).
Cristã, a Doutrina Espírita, em seu nascedouro, graças ao preparo intelectual de Kardec, que seguramente tinha vasto conhecimento das várias correntes filosóficas, desde o início valeu-se da “da dúvida como encruzilhada nos caminhos da razão”, porque, quando o pensamento se lança na busca de um objeto e se depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indeciso, conforme pondera o inesquecível Herculano Pires no capítulo nove do livro Agonia das Religiões, acrescentando que no “Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controle das manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios doutrinários”.
À luz do parágrafo acima, portanto, a Doutrina Espírita não se compraz com o “Magister dixit”, salvo quando se trata de Jesus, nosso Mestre, Modelo e Guia. Ou seja, por mais que admiremos algum autor, palestrante, médium, passista ou outro divulgador da Doutrina Espírita, não devemos tomar como certeza o que dizem sem passar suas palavras pelo crivo da razão, daí ser indispensável o estudo das Obras Básicas, assim como de outras que estejam em harmonia com elas, a fim de que tenhamos condições de averiguar a concordância ou não do que difundem com as lições doutrinárias.
O espírita deve ter consciência de que todos estão sujeitos ao progresso espiritual e que, sendo imperfeitos, cometem equívocos. Assim, a busca de conhecimento e a reflexão são essenciais para a desconstrução do leitor passivo, que absorve páginas e páginas sem análise crítica da pertinência ou não do que lê. E é a partir desse amadurecimento intelectual e espiritual que, nas várias existências, constrói-se o caminho para a transcendência, conforme tão bem explica Herculano Pires ao comentar sobre a Filosofia Existencial, uma doutrina filosófica que surgiu no século XIX e ganhou notoriedade no século XX:
[…]. Os existencialistas consideram o homem como um projecto, ou seja, um ser projetado na existência como uma flecha em direção a um alvo, que é a transcendência. Mas no Espiritismo as existências são muitas e sucessivas, de maneira que em cada existência terrena atingimos um novo grau de transcendência. As pesquisas parapsicológicas atuais sobre a reencarnação confirmam esse princípio (03).
Há de se ter em mente que, por mais sábio que seja alguém, sempre tem a aprender, porque a complexidade da natureza e do Universo não são apreensíveis em sua amplitude nem mesmo em diversas encarnações, porque domínio completo sobre a criação somente quem a criou tem, no caso, Deus, Inteligência Suprema e Causa Primeira de todas as coisas, conforme resposta dada pelo Espíritos à questão primeira da obra inaugural do espiritismo.
O exemplo de humildade de Sócrates deve nos inspirar: segundo é narrado, Querofonte se dirigiu ao Oráculo de Delfos para consultar a pitonisa e lá indagou quem era o homem mais sábio de Atenas, ao que lhe foi respondido que era Sócrates. Ao saber dessa resposta, Sócrates incialmente não concordou, mas depois de passar a vida dialogando com diversas outras personalidades que caíam em contradição, o eminente filósofo compreendeu que era considerado o mais sábio por saber que nada sabia. Por óbvio que o “nada” aí é uma força de expressão que visa a realçar o quanto o aprendizado é contínuo e infindável.
02 – Ibidem, p. 125.
03 – PIRES, Herculano. Obsessão, passe e doutrinação. São Paulo: Paideia, 2008, p. 7.